‘Já não se faz música como antigamente’. Aqui está uma frase que já todos ouvimos. Seja da boca dos mais velhos ou mesmo daqueles que, como eu, nutrem uma – temporalmente desajustada – paixão pela música do século passado, é um dizer frequentemente escutado quando se discute música. Não apenas música, mas também músicos. Uma frase passível de gerar uma altercação pertinente. Ainda assim, há uma outra – parecida, mas que atribui as culpas não aos músicos mas aos seus apreciadores – que deve, antes disso, ser dissecada. Pois aqui vai: “Já não se ouve música como antigamente”. A primeira é subjetiva. ‘Depende dos gostos de cada um’, ‘não sabes o que estás a dizer’, por aí fora. A segunda não. A segunda constata um facto. Um facto que, por sua vez, afeta a forma como se aprecia a música e os músicos nos dias de hoje. Porquê? Porque nos dias de hoje já não se ouve música como antigamente.
Quando foi a última vez que ouviram um álbum inteiro, desde a música inicial até à final, por ordem, sem quaisquer distrações senão a de imaginar, enquanto recostados no sofá, quais terão sido as peripécias do seu processo de criação? Hoje em dia já não se ouvem álbuns inteiros. Já ninguém quer saber do trabalho dos músicos. Sim, aqueles que passaram horas a fio no estúdio a criar uma sequência lógica entre as músicas do álbum que agora ninguém quer escutar de uma ponta à outra. Dói ver isto escrito, não dói? Imagine-se agora ouvido por quem a tanto se dedicou.
Ouvir as músicas do Dark Side of the Moon de forma desordenada, sem o percorrer de um lado ao outro, é como cozinhar uma carbonara e esquecermo-nos de ferver a água para colocar a massa. Um desastre. Quem diz o Dark Side of the Moon diz também o Rumours dos Fleetwood Mac, o Enter dos Russian Circles, e claro está o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band daquele quarteto de Liverpool que dizem ter sido separado por uma tal de Yoko Ono. Ouvir estes álbuns sem respeitar a sua integralidade, a ordem das suas músicas, é como assistir a um jogo de basebol em que os jogadores conscientemente optaram por não levar os tacos para o campo. É estar equipado para descer uma pista com skis ou snowboard, naquelas roupas demasiado pesadas e impermeáveis, mas afinal é Verão, estão vinte e oito graus, são 20h e só estamos à espera que o sol se decida a desaparecer no horizonte por detrás do mar. Pura e simplesmente, não faz sentido.
Numa era de consumismo exacerbado somos levados a apenas ouvir as músicas que uma aplicação com um logotipo verde e preto, e com um nome digno de feitiço do universo Harry Potter – em especial do sexto livro, ‘O Príncipe Misterioso’, os verdadeiros seguidores saberão porquê – nos parece querer impingir. Só ouvimos listas de músicas ‘aleatoriamente’ geradas por algoritmos que nos querem fazer crer saber mais sobre os nossos gostos que nós próprios. ‘Criada a pensar em ti’, dizem-nos. Não, não foi criada a pensar em nós. Se assim fosse não teria sequer sido criada. Mas a verdade é que acabamos por cair na tentação. Hoje em dia bastamo-nos por conhecer os nomes das bandas, por conseguir murmurar entre dentes os refrões das três músicas com mais cliques na plataforma para depois justificarmos, perante nós próprios e a sociedade, os cem euros que vamos gastar para ir ao concerto da tour mundial deste próximo ano que, pasme-se, afinal também vai passar por Portugal. O feed do Instagram agradece a recordação.
O que é feito do entusiasmo de saber que já saiu o novo álbum da nossa banda favorita? De corrermos – às vezes literalmente – para a Valentim de Carvalho – ou, se crescemos em Braga e gostamos de música alternativa, para a Carbono no Centro Comercial dos Granjinhos, onde trabalhava o Vítor que conhecia todos os discos daquela loja -, e de ouvir o álbum inteiro de uma ponta à outra naqueles leitores colados às paredes com os headphones à pendura? Onde foram parar as tardes inteiras em casa passadas a ouvir música sem carregar no pause, no stop ou no forward, e a folhear os livretes que acompanhavam os CDs e os LPs com imagens e curiosidades acerca do álbum que nos ia ocupar a próxima hora? ‘Quem foi o compositor da música três’? ‘O primeiro solo de guitarra na cinco é do Dave Mustaine’? ‘A voz do Chris Cornell na música dois, ao minuto um e vinte e sete, está de outro mundo’.
Esquecemo-nos que ouvir um álbum inteiro é ouvir todos os álbuns anteriores dessa banda, todos os concertos dados até então. Todas as horas no estúdio a ensaiar, todas as discussões sobre os arranjos de cada música, de cada passagem. Esquecemo-nos que ouvir o Dark Side of the Moon inteiro é ouvir o David Gilmour, com dez anos, no quarto, de guitarra em riste a treinar os acordes que fizeram dele o que é hoje em dia. Ou que ouvir o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band é acompanhar as tardes do John Lennon – o tal que se apaixonou pela Yoko Ono -, que com treze anos, deitado de barriga para o ar no chão, canta alegremente o mais recente sucesso da sua banda predileta. Algo não está certo.
Quanto a mim, mal posso esperar por estar em casa novamente e voltar a ouvir música naquele gira-discos velho e gasto que, num tom arranhado e por entre uma tosse constante, enquanto repousa numa ponta da sala, me olha de canto e recorda, com ar pesaroso, que já não se ouve música como antigamente.
Por João Barros