A história de um moliceiro

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A proa corta as águas levemente revoltas pelo vento. Algumas gotas salgadas atingem- nos a face, aliviando os efeitos dum Sol intenso. Em frente, uma imensidão de mar. São quinze metros de barco. Da proa à ré. Quinze metros comandados com mestria pelo Ti Zé Rito, arrais orgulhoso do moliceiro com o mesmo nome.  O “Zé Rito” é como um filho para o pescador artesanal, natural da praia da Torreira, na Murtosa. Construiu-o com as próprias mãos durante dois meses de intenso e cuidadoso trabalho, em madeira de pinho, como manda a tradição. O Ti Zé Rito vem de uma família de apanhadores de moliço. Homens da Ria. Dum tempo em a Ria se enchia de cor. Da cor das proas pintadas dos moliceiros que se faziam ao mar para sustento das gentes da região.

Eram outros tempos. Tempos em que os moliceiros se contavam aos milhares entre Mira e Ovar, apanhando as algas que serviam de adubo à lavoura, transportando mercadorias e gado. De costados baixos para facilitar a colheita e o carregamento do moliço, fundo plano e pequeno calado, para poderem navegar na Ria e nos seus braços de baixa profundidade sem encalharem nos bancos de areia, os moliceiros eram uma ferramenta agrícola “num ecossistema muito particular – a laguna – que era ao mesmo tempo rio e mar, terra e água”. Foi nesses tempos que o Ti Zé Rito ganhou amor aos barcos da Ria. Um amor entregue como que em testamento pelo seu pai e pelo seu avô e que ele tem sabido transmitir a filhos e netos. Foi esse amor aos moliceiros que o levou a dedicar-se à construção dessas embarcações míticas de proa recurvada, cuja origem documentada remonta ao primeiro quartel do século XVIII. Esgotada a sua função económica, quase desapareceram na década de setenta do século passado, para renascerem pouco depois, como barcos-museu, destinados a passeios turísticos – as gôndolas da Veneza portuguesa. Hoje são símbolo cultural de Aveiro, lado a lado com os ovos moles e a Arte Nova.

Foi, por isso, com mais orgulho ainda, que o Ti Zé Rito, festejou o baptismo do seu moliceiro. O “bota-abaixo” do “Zé Rito” aconteceu a 4 de Julho de 2009, numa festa emocionada, que juntou na Torreira familiares e amigos, entre eles o artista plástico José Manuel Oliveira, que pintou o barco, decorando-o, como manda a tradição, com painéis na proa e na ré. Lançado à água para a sua viagem inaugural, com a ajuda da população, o “Zé Rito” rompeu as águas da Ria num dia de sol radioso, céu azul e uma brisa suave. Um dia como hoje, afirma Mestre Rito, enquanto nos guia com mãos hábeis através da incomparável beleza desta foz do Vouga, com paragem prometida para “umas enguias como nunca provaram”, afiança o arrais. Ligeiramente atrás, vela erguida, como que seguindo-nos os passos, vem o “Manuel Silva” comandado pelo Zé Pedro, neto do Ti Zé Rito, que do alto dos seus 14 anos, mira a Ria com o olhar sábio de quem nasceu para ser mestre.

Seguimos viagem, com a certeza de que a tradição dos moliceiros não acabará nunca, enquanto a arte da navegação na Ria continuar a passar de geração em geração e a ser vivida com o amor e a dedicação que o Mestre Zé Rito e o seu neto Zé Pedro lhe devotam.

Por João Moreira

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