Não basta querer, é preciso crer. Crer no que se comunica, acreditar intimamente no que se pretende revelar para só assim conseguir emprestar a força que, sem adornos, um gesto inconsciente denuncia. Até para comunicar uma mentira é preciso uma convicção nela. Tudo o mais é slogan, talvez eficaz como seta disparada aos crédulos, mas descarnado, mas desalmado, mas desencantado. A perdição de “comunicar bem” está em subjugar o núcleo à superfície. Em cambiar a verdade pela verosimilhança. Em desejar a impressão em vez da expressão.
Comunicar não é sobretudo um “como”, é essencialmente um “quê”. Em cada um dos milhões de poemas que já foram escritos para dizer “amo-te” há um arrobo particular. Em cada discurso político de convocatória há um apelo a um povo. Em cada música, em cada tela de pintura, em cada forma de dançar ou há uma essência de descoberta e exposição íntima ou há só a forma exterior de um oco. Assim é até quando querer dizer é apenas querer vender: uma má comunicação mata uma boa ideia ou um bom produto, mas uma boa comunicação não salva uma má ideia ou um mau produto. Por um discernimento simples: quem ouve pressente a falsidade. E se a pressente, não a deixa impregnar-se na pele. A água embate no tecido mas não o molha. Uma mentira tem perna longa, pode passear por todas as searas do mundo, mas a falsidade desmascara-se a si própria, não tem lâmina para segar trigo.
Não são subtilezas de linguagem: mentira e falsidade não são sinónimos, como o não são verdade e realidade, e umas não são necessariamente antónimos das outras. Comecemos pela mentira e pela falsidade, para acabarmos, se não em beleza, pelo menos com a beleza.
Esta vida a que chamamos moderna coloca-nos num falso centro de comunicação, falso porque não somos centro de nada, somos terminações mais ou menos nervosas de uma dispersão caótica de propostas e assédios. Não somos observados como pessoas com identidade própria, mas como linhas em bases de dados com perfis de gostos e de consumos; somos metralhados por propostas para resolver problemas que não temos, para lermos o que não sabíamos que queríamos ler, para partilharmos dados que serão metadados, e tudo nos entra sem bater à porta que alegremente abrimos, veja as melhores séries aqui, leia dois livros por dia aqui, melhore o seu sono aqui, emagreça, deixe de fumar, ganhe abdominais de sonho, saiba em quem votar, odeie-os aqui, adore-se aqui, deixe de sentir-se só, encontre o amor da sua vida, faça sexo, não rebente com os miolos, descubra o segredo da vida, seja feliz aqui, aqui, aqui e aqui e aqui e aqui, somos peixes entre milhões de anzóis que usam o “comunicar bem” como pesca do que active em nós um instinto, uma memória, um medo, uma ânsia que nos faça ir lá, isto é, aqui.
O comércio lidera a venda aos peixes, a comunicação política põe venda às ovelhas, a construção de mitos e a destruição de reputações ensaia-se em laboratórios que conhecem a disponibilidade colectiva para a conspiração. É uma manipulação em larga escala para a qual só há um antídoto, a da informação, conhecimento e pensamento próprio. O antídoto dá trabalho, o de recusar o fast food saturado de tempero mas não de temperança; e exige até coragem, a de contrariar maiorias furiosamente sedentas de novas radicalidades. Não há outra forma de decidir bem que não seja pela própria cabeça. Para isso, é preciso parar no tempo que jorra lá fora. “Ser forte é parar quieto; permanecer”, disse Guimarães Rosa.
Assim se constroem realidades com o que podem não ser verdades. Mas e se somos nós os produtores, aqueles que comunicam, aqueles que entre o silêncio e o grito querem ser ouvidos? Imitar as técnicas dos manipuladores profissionais é comprar balas para uma arma de que não se dispõe. Aliás: queremos usar armas da perfídia? É uma questão ética. É uma escolha.
Muitos fotógrafos profissionais dizem que, num retrato, o sorriso esconde mais do que revela, pelo que pedem aos retratados para não sorrirem. Percebe-se porquê: o sorriso natural e o sorriso mascarado usam músculos diferentes da cara para procurarem o mesmo efeito. Da mesma forma, a comunicação pode tentar alindar ou sintetizar para perseguir uma eficácia, a eficácia de a mensagem chegar clara, convincente, ser apreendida, até retida. Mas todas as formulações só conseguirão “comunicar bem” se corresponderem não à imagem que se pretende, mas à identidade íntima e real do que se pretende comunicar.
As frases mais belas e as imagens mais fortes são as que revelam, não as que mascaram. Um jornalista tem de procurar as linhas fugidias da verdade antes de escrever. Um poeta adentra-se antes de se adestrar em palavras. Um artista anuncia o futuro porque o reconhece antes do amanhecer. E um director de marketing precisa de acreditar nos “atributos” do produto. Tudo é então comunicação: mostrar o que afinal é um “conhece-te a ti próprio”. E as palavras e as não-palavras desenrolam-se com a fácil velocidade de um tapete. Como disse Almada Negreiros no fim da sua vida, ele que escreveu prosa, poesia e teatro, que encenou e dançou, que pintou, desenhou e ilustrou, “durante toda a minha vida, não fiz outra coisa que não fosse comunicar.”
Por Pedro Santos Guerreiro