Esta é uma Bica gulosa, leiam-na sem moderação.

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“Tenho comigo próprio uma luta desmedida. Podendo, comia a lua.”

Carlos Vaz Marques, in Granta Portugal nº9

Tenho saudades das antigas Páscoas beirãs. Do cheiro a jardins floridos de começo de Primavera, a granito lavado, a terra remexida e a bolos acabados de sair do forno. Tenho saudades da azáfama das limpezas para receber o Cristo Ressuscitado. Da cozinha cheia de gente e de doces e pudins e batatas acabadinhas de fritar e couves orvalhadas e tomates coração de boi. Das brincadeiras nas vinhas e nos pomares, com primos acabados de chegar, que só reencontrávamos nesta época do ano. Da abstinência de Sexta-feira Santa, mitigada por broas de sardinha mais pecaminosas que qualquer lagosta. Dos folares do Café Central, de Vouzela, reservados religiosamente semanas antes, para que não faltassem à mesa de Domingo. Do aroma inconfundível dos raminhos de alecrim cuidadosamente colocados sobre o cabrito quase acabado de assar e do açúcar queimado a ferro em brasa, sobre o Creme d’Água, receita ancestral da família, religiosamente guardada num caderno manuscrito a letra miudinha que só via a luz do dia em ocasiões solenes. Muito mais do que os Natais, as Páscoas eram momentos de família, de mesas fartas e de exageros, abençoados por quarenta dias de jejum e abstinência, a maioria das vezes, atenuados, às escondidas, por avós pouca atreitas a sacrifícios, ainda que em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, impostos aos mais pequenos.

Para mim, as Páscoas beirãs eram sinónimo de horas passadas na cozinha, a rapar colheres de pau encharcadas de ovos moles e a catar amêndoas torradas das tartes religiosamente reservadas para a chegada do compasso, anunciando a Ressurreição. Que me recorde, terá sido, nestas páscoas, que incorri, pela primeira vez, no Pecado Capital da Gula, para, pecador me confesso, não mais parar.

É de Gula que falamos nesta edição da Bica. Nesse desejo incontrolável, além do necessário, por comida e bebida e, acrescento sem pudor, por música e arte e cinema e literatura e poesia e tudo de que gostamos desmesuradamente.

Por isso, desafiámos o mais conceituado chef português, José Avillez para uma conversa sobre o caminho que levou à conquista de duas estrelas Michelin; fomos a Florianópolis perceber as influências gastronómicas portuguesas na cozinha do chef Alysson Muller; desvendámos o segredo por detrás de um dos vinhos mais aclamados da Bairrada, o Kompassus, do gastrónomo e exímio cozinheiro, João Póvoa; visitámos Paredes de Coura, para perceber, numa apaixonante tarde de conversa com o contador de histórias e Presidente da Câmara, Vítor Paulo Pereira, como a gula musical de quatro adolescentes mudou para sempre o rumo de uma vila do interior; convidámos a Rita Santos, que há anos viaja o mundo em busca dos melhores produtos biológicos, a escrever sobre a sua Comida Independente.

Pelo meio, em jeito de homenagem, recordamos o mais genial dos músicos brasileiros, João Gilberto, numa inolvidável conversa com Carlos Alberto Afonso, na sua Toca do Vinícius, no Rio de Janeiro e desafiámos o vencedor do Prémio Leya, Itamar Vieira Júnior, para nos escrever sobre a recente atribuição do Prémio Camões ao “músico com olhos de mar”, Chico Buarque de Hollanda.

Finalmente, publicamos um dos mais extraordinários textos do Arquitecto Paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, o seu discurso de jubilação na Universidade de Évora, intitulado A Paisagem do Futuro. Relembrar o pensamento do “homem da razão antes de tempo”, além de uma obrigação, é um grito de alerta para a urgência de ordenamento de um território que, de ano para ano, é consumido pelo fogo e reduzido a cinzas.

Esta é uma Bica gulosa, leiam-na sem moderação.

 

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