ELOGIO DO COMBOIO – Gonçalo Cadilhe

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O avião que ganha altura sobre os telhados da cidade ou o autocarro que desfia nós de autoestrada, não me sacodem desejos de horizontes novos. O avião também parte, o autocarro também atravessa; mas, ao contrário do comboio, o avião e o autocarro são apenas meios de transporte. O comboio é já um vírus da alma: desperta a febre da viagem.
O fascínio começa na própria estação ferroviária, derradeiro ambiente de espanto e sujeição da História que o aeroporto já não conseguiu herdar. Abordamos a estação com a mesma reverência dos nossos antepassados quando se refugiavam nas cavernas ou se recolhiam nas catedrais: a mesma gratidão pela possibilidade de empreender um percurso espiritual por nós próprios. O veículo mudou ─ a cadência sonolenta do comboio substitui hoje o enlevo religioso de antigamente, mas o resultado no momento da chegada é idêntico: sentimo-nos melhor do que estávamos antes da partida.
Esta sensação abrangente de bem-estar é uma consequência inconsciente da solidez férrea e galopante do transporte ferroviário. Só o comboio nos consegue “transportar” de novo a uma relação uterina com o mundo, a uma passividade contemplativa da paisagem.
Talvez por isso nenhuma viagem de comboio esteja completa se não atravessar também a noite. Uma das minhas recordações mais comoventes de África é a de um despertar lento e preguiçoso no comboio de Bulawayo para Victoria Falls. A luz única da savana ao amanhecer derramava-se pela paisagem, mas em vez do rugido de leões e do guincho de macacos acordei com a alegria despreocupada de crianças em uniforme a caminho das aulas. Só então reparei que o comboio tinha parado estoicamente num pequeno apeadeiro no meio do nada, e que era provavelmente a única ligação de uma aldeia anónima do Zimbabué ao resto do mundo.
Poderia afirmar que foi o “despertar mais bonito” da minha vida, mas seria uma afirmação parcial porque o “despertar mais bonito” estava já predestinado a acontecer numa viagem de comboio. Interessante, então, seria determinar qual foi a minha viagem de comboio preferida.
Por: Gonçalo Cadilhe

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