E de repente, tempo novo de vida

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O ser humano é, entre outras realidades, um ser histórico. Vive na história, com história, tornando-se um contador de histórias. Os acontecimentos falam da vida e de como cada pessoa os atravessa. A sua história fará com que seja capaz de o fazer de modo mais sereno, conturbado, humorado, dramático, terrífico. Não sendo algo estanque, já que cada pessoa é atravessada por todos os sentimentos e emoções. O modo como conta a história é que revela a qual poderá estar a dar mais destaque. Há quem faça filmes de vida, outros documentários, outros curtas. Tudo falará de um lado humano da existência total.

Há uns anos fiz um pequeno curso de bibliodrama. A partir do psicodrama aplicam-se as mesmas ferramentas em contexto bíblico. Das coisas interessantes foi perceber que no texto bíblico de tudo se poderia encontrar uma personagem a trabalhar a interioridade e a relação com Deus. Os escuros, os silêncios, os gestos, as vozes, uma palavra específica, a casa, o chão, o pó, as sandálias, a comida, o perfume de nardo puro, o caco do vaso partido, as ligaduras são apenas alguns exemplos com que, neste trabalho, nos podemos identificar e a partir daí fazer caminho de encontro. É um modo de reencontrar momentos da história. Em particular aqueles que necessitam de ser acarinhados e, quem sabe, curados. O presente fala do passado que somos. Não tem de ser um peso, mas pode ser um modo para perceber que género me cruza a vida.

O simbólico tem grande importância no humano. Na rapidez dos tempos, na exigência do pragmatismo funcional, foi-se diluindo nos afazeres. Entrar no contexto simbólico bíblico tem-me ajudado a viver, ainda sem grandes reflexões, estes tempos próprios de longa metragem. Que novo capítulo de história se abre? Escrevo este texto em Semana Santa, na preparação para viver a Páscoa. Na etimologia do hebraico, páscoa significa passagem. Inevitavelmente estamos em tempos novos. Pois, novo capítulo de história. Está a implicar muito sofrimento de mãos dadas com muita solidariedade. Cada pessoa, atravessa de forma mais ou menos consciente os escuros, os silêncios, os gestos, as vozes, muitas palavras, concretos e bem reais que poderão ganhar novos significados de caminho de encontro. Estamos a viver Páscoa: morte e, acredito, ressurreição de novos tempos em Vida maior.

Devo dizer que, dentro de todos os limites do que implica uma definição, considero-me um realista optimista. Falando em história, já muito aconteceu na Humanidade. Ainda assim, o meu lado realista recorda-me a dureza deste “filme” ou, como já li, “episódio de Black Mirror on live”. Por isso, sem entrar em auto-enganos, não se pode romantizar nem embelezar diante do sofrimento de milhares de pessoas, sabendo que para muitas não vai ficar tudo bem. No entanto, o lado optimista, recorda-me que tenho o dever de me reconstruir neste novo capítulo, ou cena, ou “take”, dando o meu melhor.

Toda a noite tem um amanhecer, percebendo nessa luz matinal, pascal, que a vida é bela. Esta expressão da vida ser bela recolho-a do Diário de Etty Hillesum, que em boa hora foi reeditado. Por ser judia, Etty foi forçada a recolher-se, tendo sido depois enviada para Auschwitz, onde morreu. Durante esse tempo de recolhimento, viveu uma profunda Páscoa de alma. Ateia, de grande cultura literária, foi-se abrindo à fé renovadora de esperança com profundo amor divino. Escreveu: “os frutos e as flores crescem em qualquer pedaço de terra onde foram plantados. Não será essa intenção connosco? E não devemos nós ajudar a concretizar essa intenção?” Entre muitas profundas passagens de Etty no seu Diário, esta remete-me para o simbolismo bíblico da terra de onde fomos formados, permitindo-nos ser lugar de acolhimento de sementes de bons frutos nos valores que humanizam. É tempo novo.

A esperança acontece na autenticidade, no reconhecimento do imenso que somos. A comoção teológica de que nos fala Paul Tillich, “sou podendo não ter sido” abre-nos a perspectiva de que não podemos ficar mergulhados na mediocridade humana. Então, dentro da dureza da realidade surgem novas perguntas para o novo capítulo: o que posso dar? Que frutos sou chamado a colher? Que plantas a plantar?

Dentro do realista optimista acrescento o utópico: que o novo capítulo da história ou as próximas cenas deste grande filme que toda a humanidade atravessa nos ajude a reconhecer, usando as palavras do Papa Francisco, que ninguém se salva sozinho, promovendo a dignidade, o respeito, o amor, em especial dos que mais sofrem, desde a Vida em colaboração.

fotografia: Rei dos Reis, Nicholas Ray, 1961

Por Paulo Duarte, sj

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