Catorze dias pelo resto das nossas vidas

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O desafio do COVID-19: como vencer? As diferenças entre a RAEM e Portugal

A Direção-Geral da Saúde informou ontem que o número de óbitos atribuídos ao COVID-19 ou SARS CoV2, se elevara para seis (mais 2 do que na véspera) e o total de casos registados para 1020 (mais 235 em 24 horas).

O número de doentes internados subiu de 89 para 126 (mais 37) e o número de internados em cuidados intensivos subiu de 20 para 26. Os casos recuperados subiram de três para cinco. Perante estes números, finalmente a DGS decidiu (não de imediato! Mas a partir da próxima semana…) introduzir o regime de quarentena de catorze dias para todos os que cheguem a Portugal. As fronteiras terrestres com Espanha foram respostas desde a última terça-feira e o presidente da República declarou o Estado de Emergência na última quarta-feira.

Embora estando a trabalhar na RAEM há quatro anos e meio, mantenho contactos estreitos com os meus colegas em Portugal. Recebo deles relatos desesperados de falta de treino, de equipamentos de proteção, e de escassez de camas de isolamento e de camas de cuidados intensivos. O número de ventiladores existentes no pais será insuficiente em poucos dias se se mantiver a progressão geométrica no numero de novos casos…

Em Macau, ontem também, o número total de casos registados era de 17, sendo que sete ativos, correspondendo a casos importados, ou seja, indivíduos recém-chegados ao território e em geral detetados pelo controlo medico feito nos postos fronteiriços, e dez casos já recuperados e com alta clínica, apos terem testado duas vezes negativos (nas vias aéreas e nas fezes) com um intervalo de 48 horas. Macau esteve 40 dias sem novos casos, até a última segunda-feira, altura em que o regresso ao território de residentes, muitos deles estudantes nas universidades europeias, e também trabalhadores não residentes de países do sudoeste asiático, trouxe a Macau uma nova onda de casos. Como resultado, as fronteiras foram encerradas, e mais de 1.500 indivíduos, no momento em que escrevo estas linhas, encontram-se a cumprir quarentena em hotéis designados pelo Governo. Desde a madrugada de quinta-feira não tivemos novos casos, mas será expectável que entre todos os indivíduos em quarentena, assim como entre os que chegarem nos próximos dias (a quem espera igualmente uma quarentena de 14 dias em centros do Governo) surjam mais casos positivos. Os profissionais de saúde estão instruídos e treinados, de acordo com o plano de contingência, e são usados equipamentos de proteção. Macau esta preparado, tanto quanto e possível estar-se, para enfrentar uma ameaça biológica deste tipo.

Qual a grande diferença entre Portugal e RAEM?

A preparação para se reagir a um surto epidémico. A preparação faz toda a diferença!

Na verdade, em Macau, como no resto da China e na generalidade dos países da Asia, onde as epidemias ocorrem de infeções respiratórias ocorrem ciclicamente, não apenas os sistemas de saúde estão preparados, mas as próprias populações estão muito mais preparadas do que as europeias.

Na verdade, perante um vírus muito mais contagiante do que o vírus da gripe e com uma letalidade em curso muito mais elevada (neste momento, em todo o mundo, registam-se 103.310 casos “resolvidos” sendo 91.912 ou 89% por “cura” e 11.398 ou 11% por óbito), e estando ainda a vacina como forma de prevenção num horizonte longínquo e indeterminado, apenas a quebra da cadeia de transmissão ou de contagio pode garantir que o numero de casos se mantenha baixo, dentro da capacidade de tratamento dos sistemas de saúde, a fim de garantir menos óbitos possíveis (ver o exemplo da baixa mortalidade na Alemanha, cujo sistema de saúde detém o mais alto numero de camas hospitalares e de camas de cuidados intensivos por cem mil habitantes).

Como conseguir então quebrar a cadeia de contágio, sem se dispor por tempo indeterminado de uma vacina? Restringindo os contactos entre os infetados e os não infetados. Mas, como sabemos quem deve evitar o contacto com quem? Obviamente, não sabemos, ou muito dificilmente sabemos. Temos então duas possibilidades de sucesso

  • Na Coreia do Sul, as autoridades realizaram centenas de milhares de testes e usaram um sistema de notificação e monitorização através de GPS. Com isso, as pessoas sabem com quem contactar sem risco e quem devem evitar, os infetados sabem que devem estar isolados (em casa, num centro de isolamento ou no hospital). E a evolução da curva de progressão do número de novos casos revela uma tendência decrescente.
  • Outra estratégia e o encerramento (lock down de condomínios, bairros, cidades, províncias, países…). Na China, como assistimos, o resultado foi excelente. Pelo terceiro dia consecutivo não há casos de transmissão endógena, dentro da comunidade, apenas casos “importados”.

E na Itália, a evolução continua no sentido ascendente, com crescimento exponencial. Verdade que com algum abrandamento, mas continua a crescer. Na opinião do coordenador da Equipa de Consultores da Cruz Vermelha Chinesa enviada para a Itália para ajudar na resposta a pandemia, o problema centra-se no facto de as medidas serem curtas: continuam a andar pessoas sem nos transportes públicos, a jantarem nos restaurantes, a não usarem mascaras. Solução: encerrar todas as atividades económicas por duas semanas.

Em Macau tudo isto foi feito, toda a atividade foi encerrada e as pessoas instadas a ficarem em casa. O que foi feito. Em complemento, controlo rigoroso das fronteiras. Uso generalizado de máscaras… Plena articulação entre todos os sectores do governo. Conferencias de imprensa diárias para manter a população informada e esclarecida das medidas tomas. Plena confiança dos cidadãos na sua liderança.

Na segunda vaga, as medidas de restrição do movimento nas fronteiras, o reforço do controlo, e a quarentena obrigatória em centros do governo aplicada a todos os que entram no território, foram decisões tomadas de forma escalonada, mas muito rápidas, sendo que as condições foram alteradas por vezes no intervalo de poucas horas.

Em Portugal o que mais me impressionou foi a falta de medidas de contenção: não houve restrições nem controlo nas fronteiras, as pessoas chegadas de zonas de risco circularam livremente e disseminaram o vírus por todo o pais, o risco e o impacto da doença foi claramente desvalorizado por opinion makers que descreveram uma realidade idílica, isenta de riscos de maior, o que levou a população a adotar comportamentos facilitadores do contagio extensivo. Acresce o desacreditar de medidas que tiveram sucesso em outras longitudes, ao invés de se tomarem medidas efetivas de preparação (planos de contingência elaborados a última da hora).  As medidas adotadas com a doença em progressão parecem-me pecar sempre por tardias, como se se caminhasse atras do prejuízo, em vez de se antecipar e procurar travar essa mesma evolução. Portugal praticamente entrou diretamente na fase de mitigação. As contradições evidentes entre a liderança e a realidade, a ausência de meios de proteção dos profissionais, o desconhecimento da capacidade instalada (há poucos dias ainda não se sabia afinal quantos ventiladores existem no país, a demora no acesso aos mercados de equipamentos de saúde para acudir as faltas, etc) revelam um sistema insuficientemente preparado. Por falta de proteção adequada, corre-se o risco de reduzir ainda mais a capacidade de resposta, por doença ou quarentena dos profissionais de primeira linha (no momento em que escrevo estas linhas encontra-se na região um avião enviado de Portugal para carregar em Cantão cerca de 30 toneladas de material e equipamentos para os hospitais portugueses, e penso que outros se seguirão).

O que resta então aos cidadãos portugueses? Serem eles próprios a quebrar as cadeias de contágio: ficarem em casa, restringirem ao máximo os contactos sociais. Usarem mascaras (nao as havendo a venda, seguir o exemplo dos chineses em cidades onde as condições foram críticas, há vídeos no YouTube ensinando como fazer as máscaras, há vídeos a ensinar como usar corretamente as máscaras). Fora de casa, dentro de casa na presença de terceiros sobre quem ignoramos os contactos nos últimos 14 dias, usar mascara sempre. E nunca tocar na face sem previamente lavar ou desinfetar as mãos. As mãos tocam nas campainhas, nos puxadores, nos teclados. O vírus sobrevive horas a vários dias nas superfícies. Há que lavara as mãos repetidamente e desinfetar as superfícies.

E isto basta? Não. Proteger os olhos, com óculos, com peliculas, de qualquer forma, evitar o contágio através dos olhos.

Parece obsessivo? Sem dúvida. Mas é eficaz! Funcionou na China, funcionou na Coreia. Vai funcionar com os portugueses também.

Este vírus e um oportunista e vinga multiplicando-se à custa dos nossos “erros”.

Temos de ser melhores do que ele e saber como o derrotar.

Vamos todos pensar que se fizermos este esforço de isolamento, serão 14 dias das nossas vidas, talvez um pouco mais, mas vamos conseguir que as nossas vidas nos sejam devolvidas, e vamos ajudar a salvar as vidas de todos os que são mais vulneráveis e a quem o COVID-19 pode matar.

 

José Manuel Esteves

Presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa de Macau.

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