“Ah, quem dera que viesse a noite!” William Shakespeare, in Hamlet, trad. António M. Feijó

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Muitas são as vozes que se têm levantado contra o “boom” do turismo dos últimos anos, nas quais incluo, em algumas situações, a minha. É particularmente chocante a absurda subida dos preços da habitação nas nossas cidades ou a clamorosa falta de infraestrutura nos transportes, recolha de lixos ou segurança pública, por parte de um poder (autárquico, mas não só), que se recusa atavicamente a trabalhar o problema como ele se apresenta, aos olhos de todos. Não é preciso ser especialista em planeamento urbano para perceber que se trata de um movimento exógeno à nossa sociedade que, como tal, requereria que os nossos servidores públicos o trabalhassem, em vez de se colarem a ele para mais uma “selfie”. É preciso compatibilizar os interesses divergentes que o fenómeno coloca; a questão é urgente e, infelizmente, tem sido, na minha opinião, mal discutida – é que não há turismo a mais, há política a menos. Não reconhecer isto é entrar em negação ou, pior, propaganda, e por em risco a sustentabilidade dos próprios negócios, para não falar na qualidade de vida dos cidadãos.

O Turismo tem sido o motor da revitalização dos nossos centros urbanos e a noite, o veio de transmissão. Desde os anos oitenta, com a “movida” de Madrid, que aprendemos todos qual o papel transgressor-libertador da “noite”. No caso particular de Madrid, e porque esse papel esteve sempre casado com políticas coerentes na cultura, património e audiovisual, foi a “noche” quem criou um dos mais valiosos produtos de exportação em Castelhano, Pedro Almodóvar. Almodóvar, como Lou Reed ou António Variações, beberam da liberdade hedonista da noite, a luz com que iluminaram o caminho cosmopolita do seu trabalho. A “noite” é, por excelência, o período do dia mais criativo, por ser o mais distante da hora do expediente: leia-se obrigações profissionais, familiares etc…. Todos nós, em maior ou menor grau, dependendo do estilo de vida que queremos (ou podemos) ter, conhecemos o efeito libertador – substâncias à parte! – da noite e como, por vezes, ela nos ajuda a pensar “fora do quadrado” em que a vida moderna nos enfia com cada vez mais constrições. A catarse da noite tem um efeito libertador incomparável, mesmo para os mais caretas; a disponibilidade de cada um de nós aumenta de forma directamente proporcional com a permissividade que a “noite” fomenta; a “noite” deixou de ser clandestina e passou a assumir-se como veículo de interacção social num mundo cada vez mais virado para o individualismo do “faz de conta que o ́post ́ interessa”.

Às vezes precisamos de nos deitar tarde; esse excesso faz parte da nossa auto-regulação. Cabe a quem gere o espaço público não estragar o brinquedo, para que os excessos não legitimem abusos e acabemos por ter de comprometer a liberdade individual. Regule-se, já, antes que seja tarde.

Por: Nicolau Pais

Ilustração: Pedro Albuquerque

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