«… é que o meu pai, ao Domingo à tarde, bebia-lhe uns copos, e uma açordinha, ao almoço de Segunda-feira, calhava-lhe bem para desenratar, como ele dizia», escreveu Monarca Pinheiro, em 1999.
Vulgarizada entre as famílias alentejanas, a nossa açorda, herança directa da presença muçulmana neste “Garb-Al-Andaluz”, “antre Tejo e Odiana”, durante os séculos VII a XIII, deixou de ser a “ath thurda”, um comer antigo e frugal, feito à base de ervas aromáticas, alho, azeite, pão e água quente, para se enriquecer, na substância e no paladar, com as proteínas, o ferro e o fósforo, o ómega-3, as vitaminas A, E e D e o delicioso aroma do “fiel amigo” (Gadus morhua, Linnaeus, 1758, para os cientistas) quando cozido.
Na douta opinião do gastrónomo e historiador Alfredo Saramago (1938-2008), esta muito nossa confecção, de há muito valorizada pela associação ao bacalhau (no século XV, ao tempo de D. Manuel I, já havia documentos sobre a captura deste peixe, por pescadores, portugueses no Atlântico norte) veio de um tempo pré-romano, atravessou os cinco século de ocupação romana, tendo sido os árabes que, durante outros cinco séculos de presença, a fixaram e lhe deram a importância que teve entre eles e ainda tem entre nós que, com o advento do bacalhau, constitui hoje um dos nossos pratos mais regionais e mais conhecidos.
Está a qui a raiz da açorda de bacalhau que, ligeiramente, modificada, se faz em nossa casa:
Coza o bacalhau do lombo e reserve a água.
Entretanto, na batedeira ou num copo com a “varinha”, faça um batido do azeite, com os coentros picados (só não aproveita a raiz), os dentes de alho e um ovo cru ou uma ou duas gemas de ovo cozidos. Se necessário, acrescente uma pequena golada de água para ajudar a operação. Este procedimento aumenta substancialmente os aromas do alho e dos coentros, valorizando-os.
Coloque o batido no fundo da terrina de ir à mesa, verta sobre ele a água da cozedura, a ferver, e mexa bem. Alegre o caldo com uma pequena porção de pimento encarnado cru, finamente picado.
Mergulhe nesse caldo o pão alentejano, duro de 2 ou 3 dias, cortado em pequenos cubos (1 a 2 cm).
Se desejar aumentar o valor nutritivo desta confecção, complemente-a com ovos cozidos ou escalfados.
Acompanha com o bacalhau limpo de espinhas e peles.
Pode usar, querendo, uma mistura de coentro e poejo ou apenas poejo, em substituição do coentro.
As açordas do pobre não têm conduto. São as “açordas de mão no bolso” (Galopim de Carvalho, 1995), dos mais carenciados que, como a primitiva “ath thurda”, não tendo conduto, só precisam da mão que leva a colher à boca. São as “açordas peladas … não fazem mal nem bem, é só pão e água… caem nas calças e não põem nódoas” (Falcato Alves, 1994).
Mas há, também, para quem pode, açordas bem temperadas, feitas com a água de cozer o dito bacalhau, pescada ou amêijoas e, ainda, o ovo cozido ou escalfado, as azeitonas e, até, nalgumas famílias, os figos frescos. Convenhamos que uma açorda assim confeccionada, dispensa o chamado segundo prato.