A propósito de João Gilberto… uma onda que se ergueu no mar

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Breves considerações à margem da Bossa Nova

 

Há coisas que não se explicam. Sentem-se. Assim é a minha relação com o Rio. Muito antes de o visitar pela primeira vez, já éramos íntimos. O oceano que nos separava parecia reduzido ao tamanho de um pequeno curso de água que eu pulava com facilidade para chegar à outra, ambicionada, margem. Quase diariamente, deambulava pela Avenida Rio Branco, ou pela Presidente Vargas, perdia-me nas pequenas ruelas do Centro e parava no Arco do Teles para ouvir as rodas de samba, antes de me sentar na penumbra do Bar Luiz e tomar o melhor chope do centro da cidade. Mais tarde, havaiana no pé, short e camiseta, sorriso aberto ao sol de verão, feito carioca, percorreria o calçadão, do Leme ao Leblon, adentrando, por vezes (mais do que as desejáveis), nas refrescantes ruas de Copacabana e de Ipanema para chopear e bater papo sobre futebol, quase único tricolor, num mundo de vascaínos e flamenguistas. Com o fim de tarde, recolheria à Travessa, para um café regado a livros e revistas, antes de um passeio pela Visconde de Pirajá e uma oração rezada em silêncio na pequena Igreja de Nossa Senhora da Paz, partindo, depois, noite dentro, pelos botecos de Botafogo e pela animação incontida da Lapa.

Percorri cada um destes pedaços de Rio, e tantos outros, num tempo em que a internet era coisa de ficção e a única forma de viajar, em sonhos, era a literatura. Por isso, foi pelas mãos de Vinicius e Drummond, de Garcia-Roza e Rubem Fonseca, de Ruy Castro e Nelson Rodrigues, de Machado de Assis e Lima Barreto, que deambulei, sentado em casa de meus pais, em Viseu,  pelas ruas desta cidade ímpar.

Mas a verdade é que essa paixão começara muito antes, num final de uma manhã chuvosa de Agosto de 1981, aos dez anos de idade, na Figueira da Foz, para onde, por tradição familiar, íamos a veraneio, mal as aulas terminavam e o calor de verão se fazia anunciar. Nessa manhã longínqua, impossibilitado de ir para a praia, fiquei em casa a ler, tendo como única companhia os sons distantes de uma velha Philco, a preto e branco, que nos acompanhava religiosamente nesta mudança anual. De repente, um som dissonante, estranho, mas melodioso e ritmado, começou a ganhar corpo na velha televisão, e uma voz quase inaudível confiscou toda a minha atenção. Parei a leitura e concentrei-me na TV, onde um homem de fato escuro, sentado num banco de madeira, violão na mão, entoava “pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca…” Durante quase uma hora, ouvi atentamente João Gilberto, num show gravado ao vivo para a TV Globo. Meu Deus, o que era aquilo? Que música. Que batida. Que voz suave. Que genialidade. Que perfeccionismo. Sei que saí de casa e fui procurar todos os LP’s do João, disponíveis no mercado. Comprei dois, os que existiam, Getz/Gilberto e João Gilberto, e foi um verão inteiramente dedicado à Bossa Nova e à descoberta da cidade que lhe dera origem. Um verão que mudou a minha vida.

Muitos anos decorreriam até que aterrasse pela primeira vez no Galeão, ou melhor, no Aeroporto Internacional António Carlos Jobim, e pudesse confirmar, ao vivo e a cores, cada um dos motivos dessa incontrolável paixão. Dessa primeira vez, quando a porta do avião se abriu e senti no rosto uma baforada de ar quente, percebi que estava em casa. E nem o trajecto pela Linha Vermelha, ladeada de favelas numa espécie de choque de realidade, nem o cheiro putrefacto da Baía de Guanabara, presente de Deus envenenado pelo Homem, mudaram o meu encanto pelo Rio. Nessa viagem inicial, quase exclusivamente dedicada à história e às estórias da Bossa Nova, descobri, por acaso, o mais charmoso e encantador recanto de Ipanema, a Toca do Vinicius, e por lá me perdi, horas a fio, em conversas com o seu fundador e proprietário, Carlos Alberto Afonso, sobre a música e a poesia, a política e a sociedade, e sobre as muitas e divertidas estórias dos génios que entregaram ao mundo a mais extraordinária das músicas modernas.

Alguns anos percorridos sobre essa primeira visita, regressei à Toca do Vinicius para conversar com Carlos Alberto Afonso sobre o ídolo em comum, João Gilberto. Aqui fica, em jeito de homenagem, o registo possível de uma inolvidável tarde de conversa, centrada na genialidade da música do baiano, que Vinicius declarou ser “o maior património cultural do Brasil”.

 

Como é que começou a Toca do Vinicius, este projecto que é, antes de mais, de divulgação musical, poética, literária e cultural, mas também político e social, com um sentido, obviamente, de interventor e de mudança?

 

Nós não visamos às mudanças, acreditamos nas transformações. Eu, por princípio, acredito na transformação, eu luto pela transformação, e acredito que as alterações têm de resultar de transformações e não de mudanças.

Tenho quase setenta anos, e tive uma criação faustosa, uma adolescência faustosa e uma primeira idade adulta também faustosa, sem problemas financeiros, mas muito presa. Muito fechada em casa. Já na época havia mitos em relação à segurança, a história de um carro preto que raptava crianças (sorriso provocante no rosto). Os meus amigos eram os amigos dos meus pais. Acabei por ter uma infância solitária, não ausente de amor, mas solitária. Uma espécie de solidão camoniana, desse “andar solitário entre a gente”. Eu vivia entre toda a gente, solitariamente. Talvez por isso, sempre gostei de pensar. Sempre senti necessidade de pensar. E isso me acompanhou ao longo da vida. Mesmo na minha actividade profissional, como professor, a minha disciplina não foi exactamente literatura. Eu gosto muito de literatura, mas podia ter sido professor de História, de Filosofia, de Ciências Sociais. Trabalhei com um grande e querido antropólogo, Darcy Ribeiro, durante um bom tempo. Aliás, a minha perspectiva é sempre antropológica. Mas a minha disciplina era Teoria Literária, quer dizer, o que me fascinava não era tanto a emoção que o texto, fosse ele qual fosse, podia produzir em mim, o que me fascinava era tentar descobrir o funcionamento daquele discurso.

 

Quando aconteceu a descoberta desse gosto pela literatura e pelo funcionamento do discurso literário?

 

Não foi com a minha primeira leitura. A minha primeira leitura, fascinante, inesquecível (tive muita sorte com isso), foi “Mar Morto”, do Jorge Amado. Eu li “Mar Morto” com catorze anos, e “Mar Morto” é um exercício lírico, é uma prosa de carga poética, de essência poética, e despertou muito a minha emoção. Mas a necessidade da reflexão veio depois, de Machado de Assis, e nunca mais me deixou. Hoje, continuo dependente dele.

Por outro lado, há um personagem, contemporâneo nosso, por quem eu tenho, em primeiro lugar, um grande, um enorme respeito. Para você entender, eu respeito esse personagem como a muito pouca gente. Depois entra a admiração. Quer dizer, além do respeito, eu sinto uma enorme admiração por ele. Então, eu tenho ocupado bastante tempo, tenho destinado grande parte do meu tempo disponível, que é sempre muito exíguo, a pensá-lo. Estou falando de João Gilberto. João Gilberto (repete, como que querendo reforçar a importância desse nome). E onde entra o Machado de Assis nessa história? Jamais tive dificuldades em definir as minhas convicções. A minha convicção foi sempre uma convicção fácil em relação ao João Gilberto. A compreensão é que não é tão fácil, exige reflexões, inclusive um pequeno acervo de factos. Em suma, Simão Bacamarte é um personagem de Machado de Assis, do conto “O Alienista”, e é um paralelo que eu tenho trabalhado com João Gilberto. Ambos trancam a sociedade no mundo e ficam libertos, ficam inteiramente livres. Então, estas são coisas que vêm a partir da nossa visão de mundo, sempre reflectindo. Não apenas em relação à emoção, gostando ou não gostando, se emocionado ou não, mas, fundamentalmente, em relação ao material humano, à sociedade (Carlos esboçando um sorriso, marcado pelo suave arrastar da palavra sociedade, com uma acentuação particularmente aberta e prolongada da penúltima sílaba). A sociedade é a palavra-chave de tudo! A minha professora é a História, sem dúvida nenhuma. Por isso, para mim, há um binómio fundamental: produção e sociedade.

 

O Professor é assim. Viaja nas conversas, mantendo o norte. Parece perder-se em longas explanações, para, de repente, quando menos esperamos, retomar a nossa pergunta. E aí percebemos como, para a resposta final, foi importante esse passeio pela história, pela literatura, pela sociedade. Ainda não sabemos como surgiu a Toca do Vinicius, mas, com certeza, lá chegaremos.

 

Tudo isto apenas intuído (continua). Mas, a partir de certo momento, não apenas intuído, com o trânsito da linguagem para a língua, sendo devidamente realizado, efectivamente reflectido.

 

Isso aconteceu em que altura da sua vida?

 

Volto atrás, à minha infância. A minha busca sempre foi solitária. Aprendi, sobretudo, com essa solidão. A solidão me levou à reflexão, a brincar de carrinho e a ver e a jogar futebol, sempre. O divertimento da minha vida sempre foi o futebol: ver e jogar. Assim, nessa solidão, me fui formando, e, com 19 anos, já escrevia a correspondência do Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Danton Jobim. E porquê? Porque tinha uma boa caneta. Tinha uma boa expressão, tanto oral quanto escrita. E foi engraçado, porque, durante muito tempo, ele lia, cortava aqui, acrescentava ali, e isso me frustrava um pouco. Mas lembro o que senti quando escrevi a correspondência para o Richard Nixon, Presidente dos Estados Unidos, cumprimentando-o pela chegada do homem à Lua. Então, o Danton Jobim leu e disse assim: “Pode dactilografar como está.” Puxa vida! Você não pode imaginar o que senti. Olhe aqui, ainda hoje me arrepio (Carlos esticando o braço para mostrar os pelos eriçados pela emoção). Esse foi o meu primeiro lugar de trabalho. Eu fazia faculdade de direito, de manhã, para o Itamaraty, faculdade de letras, à noite, por minha causa, e, à tarde, trabalhava na ABI, que foi a minha primeira grande casa. Acho que o primeiro grande amor da minha vida.

 

Neste momento, a Toca do Vinicius é invadida por um grupo de turistas, e Carlos, para quem o atendimento personalizado é factor decisivo na sua empreitada cultural, abandona a entrevista para, com um sorriso afectuoso nos lábios, receber cada um dos curiosos visitantes do seu pequeno espaço da Rua Vinicius de Moraes, em Ipanema. Quem entra na Toca sabe ao que vem. Mais do que discos ou livros, busca as pequenas estórias que estão por detrás de cada um deles, e sabe, à partida, que Carlos é um repositório dos episódios picarescos que fizeram a História da Bossa e da Cidade Maravilhosa.

Aproveitamos para fumar um cigarro na Calçada da Fama de Ipanema, outra das ideias do Professor, que, há tempos atrás, a definiu da seguinte forma: “Diria que é um monumento de autoconstrução, na medida em que não é um escultor que produz essas peças, mas a própria pessoa, que está sendo lembrada, grava suas mãos, escreve seu nome e a data. Então, a Calçada da Fama não apenas quer ser, ela é um monumento representativo da cultura brasileira, em diversas das suas formas de produção: o esporte, a literatura, a música, a arquitetura, e, assim, sucessivamente.

De facto, assim é. Aqui estão imortalizados nomes como os de Elis Regina, Oscar Niemeyer, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Vinicius de Moraes, Ruy Castro, Daniel Jobim, Zico, Pixinguinha, Henri Salvador, Paulo Gracindo, Garrincha, entre tantos e tantos outros, numa espécie de monumento à memória colectiva de um país que se imortalizou pelas suas diversas formas de manifestação cultural. Aos poucos, a Toca vai esvaziando, e regressamos à conversa com o nosso anfitrião.

 

Voltemos à Bossa e à batida, e à voz do João Gilberto.

 

Item um: a emergência da Bossa Nova e a minha emergência existencial coincidem. A Bossa Nova é formulada durante os anos 50, e eu também fui formulado durante os anos 50. Então, existe uma coincidência cronológica. Item dois: tudo começou com o meu interesse pelo mundo. Veja a disciplina de que fui professor: Teoria Literária. Porquê Teoria Literária? Porque ela não só enseja como estimula relações interdisciplinares. Então, você estar mexendo com Teoria Literária significa que você está mexendo com escultura, com pintura, com música, ou seja, com aquilo que você achar que deve fazer para fortalecer o seu trabalho.

A Bossa foi inovadora ao trazer a poesia para a música?

Não, não, não, não. Absolutamente não. Isso é um grande equívoco. A Bossa não precisa de poesia, não precisa de letra. A letra é importante para a canção, não para a linguagem. Música é uma coisa, canção é outra. Pintura é uma coisa, tela é outra. Então, da mesma forma que a tela materializa a pintura, a canção materializa a música. A minha sociedade é uma sociedade inteligente, talentosa, mas garotona, adolescente e imatura culturalmente. Não falo de cultura académica, falo de hábitos. Por exemplo, o hábito da relação com a execução musical. A minha sociedade está habituada à relação participativa. Então, ela precisa ser sujeito daquela relação musical. Ela pode estar ouvindo João Gilberto no Theatro Municipal, e vai querer cantar junto com o João Gilberto, não percebendo que ele não vai ficar contente, não por nada, mas porque o trabalho dele é a música, sendo a canção a forma como essa música vai chegar às pessoas. Ele investiu um enorme tempo, muita expectativa na concepção das harmonias, na criação das estruturas harmónicas, na bolação dos arranjos, na pesquisa daqueles acordes, e, no momento em que ele serve esse lauto banquete, é como se estivesse servindo o vinho mais caro do mundo e você derramasse um pouco de água dentro, porque você gosta de suco de uva.

A Bossa Nova é uma música contemplativa. É a forma de executar alguma coisa, seja ela qual for, e ninguém tem o direito de desconhecer isso, porque João Gilberto ensinou isso para todo o mundo. Quando João Gilberto gravou canções que nasceram antes da Bossa Nova, quando gravou Ary Barroso, Noel Rosa, e tantos outros, quando gravou canções estrangeiras, transformando-as em samba, ele simplesmente nos sinalizou pela práxis, ele não nos sinalizou com discurso. Ele nunca ousou sair daqueles limites, amplos por sinal, da arte. Ele se expressa artisticamente. Ele entende que a sociedade é a grande beneficiária da produção artística. Ele não pode levar para a sociedade nada que não seja o seu melhor. E qual é esse melhor que pode levar? Não é analisar as coisas, porque ele não se propõe ser o analista daquele processo musical. Ele é artista. Por isso, ele se propõe à arte. Na hora em que ele quer comunicar coisas, é através do exercício da arte que ele comunica, no caso, da Bossa Nova, que nasceu como forma alternativa de interpretar o ritmo samba, como opção à forma tradicional de interpretação, que era o choro. João Gilberto começa a formular a sua interpretação musical desde o final dos anos 40, início dos anos 50, absolutamente fanático pelo samba e enorme conhecedor da música popular brasileira. Começa a formular e não a inventar. A partir de elementos da música popular brasileira, ele começa a propor uma nova linguagem, uma linguagem que sirva de alternativa à linguagem choro para a execução do samba. Ponto.

Então, a Bossa Nova foi a nave espacial levada pelo movimento, que foi o foguete propulsor, até ao espaço. Chega lá, joga a nave em órbita e ele, foguete, explode e cai no mar. Há histórias musicais que se limitam ao movimento, porque a nave não entra em órbita. Então, o foguete explode, com nave e com tudo. Esse registo vai ficar na história com respeitabilidade, com seriedade. Nós temos propostas musicais com as quais aconteceu isso, que não têm permanência, que não se desdobram, não têm presença genética em formulações futuras. Ficam na história, simplesmente. Não é o caso da Bossa Nova. No caso da Bossa Nova, o foguete levou a nave, colocou-a em órbita, e a nave está orbitando, e vai orbitar sempre, já presente, geneticamente, em outras propostas musicais posteriores. Quando você pega o tratamento que o João Gilberto dá às cordas, tanto do violão quanto do piano, o trabalho dele com o silêncio, você vai observar isso em outros violões posteriores sem qualquer compromisso com a Bossa Nova. Como aquela presença genética dos pais nos filhos, sem que faça deles cópias. Você vê a execução instrumental da Bossa Nova, e não só instrumental, mas instrumental vocal, porque Leny Andrade não tem voz, tem um instrumento na garganta. Então, você ouve em Leny aqueles elementos genéticos típicos do Jazz (o Jazz é a grande música, a minha geração, a geração da Bossa, ouvia Jazz desde que nasceu, e isso foi muito bom), o improviso, o gosto pelo improviso, as dissonâncias, e você percebe que esses elementos do Jazz têm uma relação acessória com a estrutura da Bossa Nova, quer dizer, a sua ausência não compromete a Bossa, não é estrutural. Tem? Bacana pra chuchu, tremenda vibração, adorei. Não tem? Sem problemas, mas o comportamento da Bossa Nova está lá presente.

O que quis dizer ao falar dos silêncios na música do João Gilberto?

Em São Paulo, ele foi convidado para inaugurar o Credicard Hall. Isso é facto, embora muito didáctico, que tenho pena que não tenha sido devidamente aproveitado pela mídia. Então, tinha eco no Credicard Hall, e ele observou isso. E veio o técnico de som, e corre daqui, tenta dali, o público já impaciente, e o João insistindo: “Tem eco. Tem eco.”, até ao momento em que, após muitas tentativas, o técnico de som vem com a ideia de convencê-lo de que não tem mais eco e chega ao pé do João e diz: “Agora acabou. Não tem mais eco.” Aí o João pergunta: “Você fez todos os esforços que podia ter feito?” (Carlos baixando o tom de voz, como que imitando João Gilberto.) “Sim, sim, claro.”, responde o técnico. “Além desses esforços não há mais o que fazer?”, retruca João. “Não, não.” Aí o João pega no violão e vai embora. Quando ele vai saindo, um jornalista do Globo, ultra-hábil, um diplomata, que soube respeitar e admirar o João, que é um artista, que é património brasileiro, um dos maiores patrimónios da gente, das nossas artes, pergunta: “E aí João, não deu, né?” Ao que João responde: “Não. Eu trabalho com a pausa.”

Esse “eu trabalho com a pausa” deveria ser matéria de duas, três páginas nos jornais, para a nossa sociedade aprender, naquilo ali, o que é a Bossa Nova, o que é João Gilberto. Tudo naquele: “eu trabalho com a pausa”. Claro, a pausa é um elemento fundamental. Para você ter uma ideia, antes dessa linguagem se materializar documentalmente por inteiro, numa gravação, ele acompanhou Elizeth Cardoso numa parceria de duas músicas do Tom e do Vinicius, “Chega de Saudade” e “Outra Vez”, e o pessoal comentava: “Esse cara é maluco.” Porquê? Porque em vez de fazer aquela pegada do samba, aquela batida contínua, dang dinga dang, ele trabalhou o silêncio, ele apresentou a pausa. Quer dizer, nesse momento, e a Bossa Nova não começa aí, há um vagido, um primeiro vagido, um componente estético daquilo que ele estava formulando. Coloca a cabeça de fora da vagina da mamãe, olhando para fora e vendo a barra que ia segurar. Porque o nascimento mesmo é 10 de Julho de 1958, com a gravação do 78 rpm Chega de Saudade. Olha só, quando a Bossa Nova vem à luz documentalmente, já havia um prenúncio, já havia um tô chegando na área, através de quê? Da pausa! Foi a primeira coisa que surgiu daquilo que estava nascendo. Exactamente a pausa. Tal a importância! É um componente do quadro estético da Bossa Nova.

Para perceber melhor, eu tenho vários amigos paulistas e paulistanos. Um deles, muito meu amigo mesmo, com quem estou sempre brincando, não gosta do João Gilberto, e ele é intimamente ligado ao futebol, profissionalmente ligado ao futebol, e um dia chegou aqui furioso com o João e eu retruquei: “Marcão, há possibilidade de uma partida de futebol com uma bolinha quadrada?” – “Como assim?” – “Quadrada!” – “É claro que não, né.” – “Você consegue imaginar o público exigindo que a partida se realizasse com uma bola quadradinha? O público reclamando: Má vontade! Porque é que não joga com a quadrada? Quebra o galho. Então, cara, o João tocar com reverber equivale, mais ou menos, ao futebol com bola quadrada. Algum futebolista toparia jogar com bola quadrada? Parece uma piada. Pois olha, para o João, que trabalha com a pausa, o reverber, o eco, é uma bola quadrada. Marco, a gente tem de entender isso.” O João Gilberto tem dimensão internacional, e porquê? O que é que é internacional? É a linguagem. A internacionalidade nasce por causa da universalidade da linguagem. Se a linguagem não fosse universal, a Bossa Nova não seria internacional. O japonês não entende aquilo que está sendo cantado, mas entende aquela harmonia, é educado suficientemente para a percepção da música. Eu só quero chamar a atenção para esse facto: a Bossa Nova não é um movimento, é uma linguagem, para cuja implementação existiu um movimento, ou seja, uma interação múltipla de artistas, de jovens, mostrando uns aos outros, e, de repente, uma documentação gravada, até que ela entrasse em órbita. Entrou em órbita, e permanece graças à força da estrutura. Ela não é alvenaria que você quebra com o martelo, ela é alicerces, vigas, pilastras. É isso daí. É uma estrutura. E quem pensou essa estrutura foi o João Gilberto.

 

De que forma Vinicius de Moraes entrou na Bossa e na sua vida? Afinal, esta é a Toca do Vinicius.

 

Antes demais, Vinicius entrou na minha vida, porque, com 12 anos de idade, eu já sabia que seria um profissional da diplomacia, porque os meus pais tinham decidido que eu seria diplomata. Eu não sabia o que fazia um diplomata, não tinha a menor ideia do que era isso de ser diplomata, mas já sabia que ia ser diplomata. Era assim que funcionava na minha casa, e em muitas casas, durante os anos 50. Aí, com 12 anos de idade, eu que sabia que seria diplomata, vi num jornal (Eu quero dizer a você que eu tenho esse jornal. Meus pais eram memorialistas obsessivos e eu herdei esse fascínio pelo documento) um diplomata de carreira, sentado num night club, de terno e gravata, óculos de lentes escuras (aliás esse par de óculos me pertence, como mechas do cabelo dele. Eu sou barra pesada (risos). Muitas ex-mulheres dele, que o amaram e me amaram, de maneira diferente, claro, reconheceram o meu trabalho e me legaram algumas coisas que guardo cuidadosamente) e fiquei incrédulo. Aquilo me fascinou. Fascinou o garoto de 12 anos e toda uma geração. Foi o fascínio exercido pela informalidade, pela atitude. É preciso entender Vinicius de Moraes do ponto de vista da atitude e do ponto de vista da obra. Do ponto de vista da obra, Vinicius foi um grande poeta. Ponto. Do ponto de vista da atitude, ele foi único.

Um transformador.

Exatamente. Um transformador, não um mudador. Um transformador. E isso daí fascinou toda a minha geração. O personagem Vinicius de Moraes e o seu comportamento. O Vinicius sempre foi uma pessoa muito honesta. Nunca estive com ele como estou aqui com você, mas tenho essa impressão dele, de uma pessoa muito correcta e muito honesta. Aliás, aquilo que eu falei sobre a Bossa, de não ter necessidade de letra, apenas o ouvi de outra pessoa – Vinicius de Moraes. Ele um dia afirmou que “a Bossa era o canto puro e solitário de João Gilberto, indefinidamente trancado no seu apartamento, arrancando das cordas do seu violão as harmonias e os acordes dissonantes.” O Vinicius era muito inteligente. Olha a facilidade dele, uma facilidade única de fazer o trânsito entre a linguagem e a língua. Quer dizer, ele pensava de modo preciso e correcto, e encontrava a palavra precisa e correcta que correspondia a esse pensamento preciso e correcto. É essa química. A minha admiração por ele sempre foi muito grande. Aí, quis o destino que eu fosse o quê? Professor de Literatura. Então, usei e abusei de textos de Vinicius de Moraes. Criei muita proximidade. Vira parente. Tenho saudades da minha mãe, do meu pai, do Vinicius… (risos) Daí, eu escrevi trabalhos, porque sempre pretendi que o Vinicius de Moraes chegasse aos segmentos mais populares da sociedade, porque estava trabalhando sobre alguém muito relevante no meu segmento, nada mais. Então, em 1993, ele faria oitenta anos, e, por coincidência, a Toca é de 1993, o Ronaldo Bôscoli, e isso ocupa uma página inteira da biografia dele, “A Bossa do lobo”, me convidou para fundarmos juntos a Casa da Bossa Nova.

Ronaldo Bôscoli que foi um dos líderes da Bossa Nova.

Eu diria que ele e Aloysio de Oliveira foram os dois grandes líderes. O Aloysio, fundador da editora Elenco, mais empresarial, mais organizado, mais produtor, e o Ronaldo mais ativo, mais passeata, mais sociedade, mais eu. (risos) Com um detalhe, o Ronaldo era um cara muito culto, um letrista extraordinário.

O letrista do Rio.

Sem dúvida alguma. Só a canção dele “Rio” (e Carlos trauteia: “rio que mora no mar, sorrio pro meu Rio…”), essa canção tem, dentre as canções laudatórias da cidade, o acervo de imagens, o mais rico de todas. “Rio que não dorme porque não se cansa.” Puta que pariu! “É sal, é sol, é sul…”. Você sabe o que é isso? Você sabe onde é que ele foi pegar isso? A Oswald de Andrade, o futurista. Estou falando do movimento modernista no Brasil, no princípio do século, dentro do qual o Oswald desenvolveu a antropofagia. A antropofagia consistia em quê? Em comer os valores existentes, que, no caso, eram os valores europeus. Então a proposta dele era devorar, simplesmente acabar com a primazia da tradição europeia no comportamento literário. O momento era o momento da América, e não mais da Europa. Era o novo, no continente novo. Então, em determinado momento, Oswald de Andrade, arrebatado, diz assim: “América do sol, América do sal, América do Sul.” O Bôscoli, muitos anos depois, vai consubstanciar isso na cidade do Rio de Janeiro: “Rio (…) é sol, é sal, é sul.” Inspiração? Inspiração, o cacete. Ele simplesmente tem uma bagagem de cultura académica gigantesca, e ele foi buscar aquele fresco na cabeça dele para atribuir ao Rio a consubstanciação daquela fórmula.

Mas regressemos então a 1993 e ao convite de Ronaldo Bôscoli para fundarmos a Casa da Bossa Nova. Ele disse para mim: “Você é professor.”, e aí ele usou aquela modéstia vaidosa, “Eu manjo um pouquinho de show.”, modéstia vaidosa porque ninguém manjava tanto quanto ele, e ele sabia disso, “Vai ser muito bom, porque você entra com essa parte de palestras e eu com a organização de alguns shows. O que é que você acha?” Eu, extasiado, respondi: “Estou encantado, porque, de certa forma, isso é o desdobramento das coisas em que eu acredito. Significa interagir com a sociedade. Eu estou maravilhado, e, por isso, diria já “Eu topo!”, mas quero conversar em casa, e depois te digo”. Mas, aí, saí de lá e fui conversar directo com o Prefeito da cidade, o César Maia, grande protector da Bossa Nova, e expliquei a ideia. Ele disse: “Carlos Alberto, a ideia é ótima, e eu vou colocar você falando com o Director do Património da Cidade para ver se tem um imóvel disponível. Se não tiver nenhum disponível, então, faremos o seguinte: eu vou negociar com o Estado ou com a União uma permuta, porque a ideia é maravilhosa. Isso é Rio de Janeiro”. Fui falar com o Director do Património, analisámos uma lista de imóveis municipais, e não havia nada de nada. Aí, continuámos procurando, e surgiu uma coisa que estava no Arpoador, mas não deu em nada. Entretanto, conversei com a minha mulher e os meus filhos, e expliquei que queria fazer uma pequena livraria com discos, voltada para a música e, naturalmente, focalizando a Bossa Nova, e que tinha de dar uma resposta ao Ronaldo Bôscoli. Mas teria um detalhe, eu não tinha como ficar a tempo inteiro porque ainda dava aulas. O conceito seria meu, a direcção seria minha, mas precisava da ajuda deles, e eles aceitaram revezar-se. Então, fui falar com o Ronaldo e expliquei-lhe: “Vamos fazer, mas não uma casa. Se crescer vira casa, mas se não crescer não faremos papel feio. Vai ser a Toca da Bossa Nova”. Ele riu e disse: “Faz o que você quiser”. Aluguei uma lojinha neste quarteirão, na Visconde de Pirajá nº318, e decidimos inaugurar em Setembro, porque seria próximo do final do ano, e eu precisava vender para manter o espaço. Ficou uma gracinha. Pequenininha, 12 metros quadrados, do tamanho de um banheiro de casa de rico. Acontece que, no dia 14 de Abril, eu ia fazer uma palestra, lá em Bom Sucesso, e vejo no Caderno B, do saudoso Jornal do Brasil, uma página inteira com a seguinte manchete: “Quem salvará o ano do poeta?”. Falta de patrocínios para comemorar os oitenta anos de Vinicius de Moraes, e uma proposta – o lançamento de um movimento chamado SOS Vinicius. Aquilo me deprimiu barbaramente. Eu não li a matéria toda, dobrei o Caderno B, corri para o orelhão e liguei para casa de Sérgio Cabral Pai. Quando o Sérgio Cabral prefaciou o meu livro, ele me contou que, quando era vereador, requereu, na Câmara Municipal, o título de Cidadão Benemérito Post-Mortem para o Vinicius de Moraes, e isso me emocionou por várias razões, mas, sobretudo, pelo mérito, porque isso era a cara do Vinicius, a maior comenda que ele podia receber: ser cidadão benemérito dessa cidade que nós amamos, muito, muito, muito, como a uma pessoa. Só que teve um problema, o Tribunal de Contas requisitou o Sérgio Cabral, ele interrompeu o mandato, e o requerimento foi arquivado. Isso nunca me saiu da cabeça. Naquele momento, eu li, corri para o orelhão e falei com ele. Ele já tinha lido e perguntou como podia ajudar. Eu perguntei-lhe se ele me autorizava a pedir ao Saturnino Braga, que era vereador, para desarquivar aquele requerimento. O Sérgio Cabral vibrou e mandou avançar. Fui para a Câmara Municipal, falei com o Saturnino, que disse: “Estou dentro”. No dia 19 de Outubro de 1993, dia do aniversário do poeta, à noite, a Câmara Municipal, da cidade dele, estava lotada (Carlos emocionado) com artistas, dois ônibus de alunos meus, da escola pública, e muito mais gente para homenagear Vinicius. Então, o Saturnino me preparou uma surpresa maravilhosa, porque me condecorou com a Medalha Pedro Ernesto, a mais alta condecoração do Município do Rio de Janeiro, e me pediu para que eu proferisse a palestra da noite, e eu conduzi toda a cerimónia. Chico Alencar, Baden Powell…Enfim, foi maravilhoso. Vinicius de Moraes, cidadão benemérito da sua cidade, a cidade que ele amava. Uma emoção muito forte. A outra forma de contribuição foi a decisão, tomada familiarmente, de mudar o nome de Toca da Bossa Nova para Toca do Vinicius. Não foi uma decisão facilmente aceite. A minha mulher, descendente de uma família de comerciantes e com uma visão comercial aguçada, perguntou-me: “Meu bem, você tem certeza disso?” “Tenho.”, respondi. “Porquê?”, questionei. “Porque quando você falou no nome Toca da Bossa Nova eu achei perfeito, porque reunia todos os autores da Bossa, Carlos Lyra, Tom, João Gilberto, Pery Ribeiro, Menescal, Leny Andrade, e tantos outros. Já pensou quantos nomes tem por trás desse nome, quantos milhares de fãs de cada um deles? Agora Vinicius? Nem Drummond”.

Ela tinha razão. Nesse mesmo ano, tinha saído um livro (Carlos vai pegar o exemplar em questão, memorialista como é, e mostra-nos o célebre “3 Antônios e 1 Jobim” de Zuenir Ventura) que reproduz uma conversa entre quatro Antônios, barra-pesada, Antonio Candido, Antonio Callado, Antônio Houaiss e Antonio Carlos Jobim, os maiores intelectuais brasileiros. O livro é uma reprodução, não é uma paráfrase, ele gravou e reproduziu os diálogos. Isto em 1993, só para que você tenha uma ideia do significado do nosso poeta amado, naquele momento, quando eu fiz a Toca. (Carlos procura no livro o trecho que quer reproduzir, e começa, com voz pesarosa):

“Antonio Candido: No momento Vinicius não está bem junto à crítica, digamos que ele não está na moda.

Antonio Callado: Claro que não está.

Antonio Candido: Não está na moda, mas eu acho uma grave injustiça.”

Então, naquele momento, de facto, Vinicius não era conhecido, a não ser por um círculo muito restrito de pessoas. A Companhia das Letras estava, ainda, adoptando a obra do Vinicius. Ele não tinha uma distribuição organizada, não chegava ao grande público. Ele chegava a nós, ao nosso segmento. Entendeu? A Companhia das Letras estava pegando na obra dele para fazer essa loucura maravilhosa que tem feito ao longo desses anos.

Uma semana depois da Toca do Vinicius nascer, em 27 de setembro de 1993, (mais uma vez, Carlos busca, nas prateleiras da sua extraordinária biblioteca particular, o exemplar que quer mostrar) no dia 7 de outubro, eu ganhei esse presente, capa dura, já Companhia das Letras, com a seguinte dedicatória:

“Amigo Carlos, sem você, tenho a certeza de que não seríamos ninguém, como dizia o poeta. Toda a gratidão pelo seu empenho e dedicação ao poetinha. Com carinho de seus filhos e principalmente de sua filha Luciana de Moraes.”

Então, aqui, foi uma grande pedreira. Com o passar do tempo e os lançamentos que a Companhia das Letras foi fazendo da obra do poeta, Vinicius passou a ser mais fácil de carregar. Mas no início, no momento daquele artigo do Caderno B do Jornal do Brasil, não foi fácil. Mesmo assim, em 2008, tive necessidade de colocar na entrada uma faixa grande dizendo: “Bossa Nova”, porque Vinicius é poesia, e eu cansava de sair daqui de dentro, onde ouço os comentários de quem está na porta, para explicar que aqui não era só Vinicius, também tinha os outros, João Gilberto, Tom, Lyra, Menescal, todos. E foi em 2008, porque coincidiram, os 15 anos da Toca e o cinquentenário da Bossa Nova. Nesse ano, aluguei um colégio e organizei um Congresso, de 30 horas de atividades, naturalmente com um primeiríssimo team, Ruy Castro, Ricardo Cravo Albin, Tárik de Souza, e mensagens e depoimentos dos maiores da Bossa. A história é essa. Foi assim que nasceu a Toca. Mas nada disto existiria sem a genialidade de João Gilberto. Ele está acima de todos. É o nosso maior património.

 

No passado dia 8 de Julho, Carlos Alberto Afonso juntou-se a amigos, artistas e fãs de João Gilberto, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, para homenagear o seu ídolo pela última vez, cantando “vai minha tristeza…”

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