Era março, uma onda vinda do Leste já estava varrendo a Europa. No Brasil aquela calmaria que precede as frentes frias: Calor, pouco vento e os cirrus já se formavam no céu, mas muitos se recusavam a acreditar. Para um bom navegador era fácil notar que o vento e o frio da COVID se aproximavam, mas alguns achavam que a frente fria ia se deslocar para o mar, não sei o que se passava na cabeça deles.
Bom… chegou. Neste mesmo mês fiz um episódio exercitando as minhas habilidades de futurólogo falando sobre o futuro da vela depois do impacto econômico e sanitário desta crise. Uma das minhas previsões é que o mercado de barcos novos e usados iria encolher, afinal era óbvia a crise que se seguiria logo depois. Errei, pelo menos até agora, o que pode fazer você duvidar de muito do que vou escrever abaixo.
No dia de hoje o sentimento de todos com quem converso é de que os barcos subiram de preço. Nos últimos meses foram os que mais recebi mensagens de pessoas querendo morar a bordo de veleiros. Confirmei esta minha observação ao encontrar matérias em outros países como Canadá e Reino Unido onde a indústria de barcos e Motorhomes também tem crescido consideravelmente. Há uma falta de veleiros usados e os novos subiram de preço, impactados pelo cambio também, é verdade, mas por quê?
Durante os primeiros 300 mil anos o Homo Sapiens viveu nômade, seus antecessores eram também nômades. Foi há cerca de 12 mil anos que começamos aos poucos nos tornar sedentários, depois do advento da agricultura. Um processo sem dúvida nenhuma vantajoso para a espécie, tínhamos uma fonte de alimento muito mais previsível e abundante, mas esta vantagem não era tão clara para o indivíduo. Na verdade, a altura média dos seres humanos caçadores coletores sempre foi maior que a dos agricultores e a poucas décadas se igualou. A comida era muito pouco variada para os primeiros agricultores e maioria passava uma vida inteira sem sair de um raio de 10km.
A maioria de nós se mantém amarrados a compromissos profissionais em um só lugar desde então. Era necessário. Como era possível colaborar em uma rede de cooperação produtiva e eficiente sem troca material e de comunicação rápida e complexa. Tudo bem, sempre existiram aqueles que faziam a vida unindo diferentes cidades, países, mas eram a minoria.
Agora não é mais necessário para ter uma vida produtiva ficar em um lugar só, pelo menos para uma grande fatia da sociedade, especialmente nos países mais desenvolvidos. Já não era há um tempo, mas a pandemia tornou praticamente obrigatório o trabalho remoto para grande parte das empresas e elas gostaram. Acredito que a maioria dos trabalhadores gostou também. Tenho convicção de que isto veio para ficar.
Daqui a algum tempo estas pessoas trabalhando em casa vão querer sair de suas cidades para respirar novos ares, cansadas da quarentena. Passar um fim de semana em uma cidade diferente. Quem sabe trabalhar de lá na segunda e voltar na terça? Se funcionar bem, por que não alugar uma casa durante um mês? Este mesmo indivíduo vai notar que é totalmente possível trabalhar em outro lugar com boa internet. Por que não ficar 3 meses ou melhor, nem voltar pra casa?
Eu consigo enxergar uma grande quantidade de pessoas se tornando nômade. Já estava acontecendo, mas com a pandemia uma barreira cultural importante foi quebrada. Deixou de ser tabu nas empresas. Eu fiz isso 3 anos atrás e foi uma das escolhas que mais enriqueceu a minha experiência de vida.
Alguns destes novos nômades digitais, já enxergam morar em um veleiro como uma das opções viáveis neste novo normal. Um tipo de isolamento que te permite trabalhar e estar em contato com a natureza ao mesmo tempo. É claro que morar em um barco traz uma série de dificuldades, algumas extremamente educativas do ponto de vista ambiental, como o controle do consumo da água e da energia. Hoje eu e minha esposa utilizamos 40 litros de águas diários para toda as necessidades e produzimos dois canais de Youtube com uma placa solar de 550W, eventualmente ligando o motor de diesel em dias muito nublados.
Vou me defender um pouco e dizer que não errei totalmente o meu exercício de futurologia de março deste ano, se você me permite alguma defesa. Na ocasião falei que havia duas tendências antagônicas. Pessoas com menos dinheiro empurrando o mercado náutico para baixo e mais pessoas querendo morar a bordo de veleiros. Não imaginava que a segunda força superaria a primeira. Mesmo para aqueles que não moram a bordo talvez o veleiro tenha uma importância maior agora, já que o turismo enfrenta grandes dificuldades e temores. Imagine estes dois cenários:
Um casal chega em uma cidade, janta em um restaurante onde 100 outros casais jantaram, dorme em um hotel onde outros 40 casais tomaram café da manhã em um mesmo buffet, faz um passeio turístico qualquer onde outras centenas de pessoas estiveram, almoça em outro restaurante, anda pela cidade e retorna para o hotel onde uma parte dos hóspedes já são outros. Imagine isso durante 7 dias se repetindo. Quantas oportunidades de contágio houve?
No segundo cenário um casal entra em um veleiro que vai ser sua hospedagem, veículo de transporte até pontos turísticos e lugar das suas refeições nos próximos 7 dias. Menos chances de contágio não? É possível passar uma semana incrível sem sair do barco parando em ancoragens isoladas.
Além disso estamos em um momento em que muitos notaram o quanto são frágeis nossos planejamentos, planos de aposentadoria e outras tentativas de encaixar o mundo nas nossas expectativas, basta uma mutação em um vírus em outro lugar do mundo para colocar de joelhos o mais prevenido dos organizadores. Isso não tira a nossa necessidade de pensar no futuro e se precaver, obviamente, mas coloca a perspectiva de que o paraíso que projetamos para uma aposentadoria em algum lugar no futuro pode nunca chegar ou ser muito diferente do que gostaríamos. Então o caminho precisa valer a pena, não só no final da jornada.
A pandemia não veio para libertar ninguém, não veio para ensinar nada e muito menos para tornar o ser humano melhor. Vírus pandêmicos, não estão preocupados com a sua satisfação e o seu autoconhecimento. Porém, nós como indivíduos, e como sociedade também, temos o dever de aprender com o que a vida nos joga, especialmente quanto é algo que não escolheríamos, e usar a situação como uma oportunidade para nos transformarmos e vivermos melhor.
Eu enxergo o futuro da vela com talvez menos velejadores eventuais, mas por outro lado mais pessoas mais engajadas, muitas delas morando e trabalhando em seus veleiros, já que com um notebook e internet qualquer lugar confortável é um escritório em potencial. Muito em breve novas tecnologias como internet via satélite melhores e mais baratas prometem facilitar isso, como o Starlink da Spacex, por exemplo. Muitas tecnologias têm tornado mais fácil a vida no mar, mas na realidade a maior barreira era cultural: A crença de que era necessário estar em um ambiente corporativo para ser produtivo. Uma questão estética, moral, quase fictícia, que nos faz pensar quantas crenças limitadoras e engessadas como esta ainda temos para quebrar?
Adriano Plotzki
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