Viajar: regresso à plenitude de si

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9 anos. A idade com que voei pela primeira vez graças a um momento de sorte. O aeródromo de Portimão ofereceu uma viagem de avioneta a um aluno de cada sala das Escolas Primárias da cidade. Recordo perfeitamente a professora a enrolar os papelinhos em branco e um com “viagem” escrito, a colocá-los na caixa e dizer para tirarmos. Entre o frio na barriga e a explosão de alegria, “viagem” era desenrolada: ganhei.

O meu pai levou-me ao aeródromo. Era um dia de Festival Aéreo. Muitas pessoas, da cidade e outras tantas de lugares por mim desconhecidos. Do tamanho de criança tudo era grande, imenso, deslumbrante. Os sons das avionetas, a agitação das pessoas, a emoção em aproximar-me daquela máquina que me levaria aos céus. O sonho de voar já me acompanhava há muito, apesar da tenra idade. Sempre quis ser como o Super-Homem e assim voar e ajudar os outros. Ainda no jardim infantil, tendo 4 ou 5 anos, a minha sala iria ter “Índios” como tema de carnaval, com os fatos feitos de jornais. Eu cheguei mascarado de Super-Homem, tal não era o fascínio. A Educadora lá me fez umas riscas. Mas eu estava de azul e vermelho, com capa. Fechava os olhos, elevava o braço ao alto e imaginava-me a levantar voo a caminho do infinito. Naquele dia, a capa tinha asas e o infinito foi uma belíssima viagem pela costa algarvia. Recordo o som dos motores e a emoção de ver lá longe as casas e o imenso mar de nova perspectiva. As viagens dão-nos outra perspectiva da vida, no regresso. Com mais ou menos impacto, não somos os mesmos. Algo novo acontece.

O livro do Génesis começa com os mitos da criação. Também o da expulsão do paraíso, que não é mais do que a grande viagem do regresso do ser humano a si mesmo, à sua plenitude. Não é por acaso que de seguida são relatadas, além do mito do dilúvio com a viagem de Noé, as três outras grandes viagens dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob. Lidas, não tanto desde a historicidade, mas da profundidade da essência e da existência, cada viagem é um convite à beleza do caminho no encontro do divino presente no ser humano, sem cair em endeusamentos. Pena que se tenha carregado com moralismo muitas das histórias pois, tal como as viagens, convidam a regressar à autenticidade de quem somos. Adam, ou seja, o ser humano, na dualidade de masculino e feminino, retirado e modelado da Adamah, terra, vive a pressa de ser como Deus. Acaba por comer o fruto da árvore do cumprido e do ainda não cumprido, apercebendo-se de seguida que está nu, frágil, vulnerável e com medo. Aí ecoa a primeira pergunta divina: “onde estás?” Para se encontrar, tem de sair. A saída torna-se oportunidade de descoberta. Criado à imagem e semelhança de Deus, o ser humano é mistério. Tudo se torna aprendizagem no desvelar da misteriosa complexidade do ser humano. Libertar-se, sair das correntes do mau entendimento do divino, como o poder ou o controle, e perceber como a diversidade é caminho de compreensão e de amor.

Onze anos depois do primeiro voo, entrei novamente num avião. Já tinha voltado a ser passageiro. Desta vez, começava a voar como tripulante. Seria um “super-homem” quase diariamente, nos muitos voos ao longo de três anos de comissário na PGA – Portugália Airlines. Num dos voos, sobrevoávamos Madrid. Conseguia ver a mancha da cidade. “Vejo Madrid”, pensei. Anos mais tarde, já depois de ter mudado de Companhia, da aérea para a de Jesus, vivi em Madrid. Num dos primeiros dias chegado à cidade fui dar um passeio. “Vejo Madrid”, pensei. Fiquei parado com a frase, surgindo-me na memória a imagem daquele voo em que afinal comecei a ver Madrid. Ver, descobrir, entrar na essência das coisas é um aproximar que ajuda a mudar perspectivas. Entrar pelas ruas e ruelas de Madrid foi começar a conhecer a cidade de outra perspectiva. Entrar pelas histórias, acontecimentos, sonhos, frustrações, erros e ganhos, dons e pecados das pessoas é ganhar consciência da misteriosa complexidade do ser humano.

Senhores passageiros, perdão, leitores, com maior ou menor turbulência, paragens, medos, surpresas, deslumbramentos, sintam-se sempre bem-vindos a bordo da viagem ao regresso da plenitude de si.

Por Paulo Duarte

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