Viagem ao começo de mim

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Quisera ter a memória paquidérmica de meu amigo Joaquim. Ele era capaz de lembrar, com pormenores irritantes, como aos quatro anos espremia pintinhos com os pés para saciar sua curiosidade no mínimo sádica. Mesmo tendo os fatos seguintes acontecido já em minha adolescência, faltam-me aqueles detalhes que dariam robustez e apelo à narrativa. O que me resta é a imaginação para dar tempero a essas memórias que, apesar de empalidecidas pelas décadas passadas, ainda carregam o impacto das experiências transformadoras de uma vida.

Eu mal havia feito 12 anos quando meu pai desistiu do Brasil. Não que o País lhe tivesse sido ingrato. Ele até amealhara algumas economias desde sua juventude, mas, depois de uma viagem saudosa a Portugal passados 20 anos de seu êxodo, a ideia de retornar à pátria-mãe o seduziu. Nunca lhe sondei, eu já adulto, o que o motivara a voltar à terra de onde tão precocemente havia partido. Talvez, durante todos aqueles anos de desterro, tenha se sentido um alienígena incurável, incapaz de abraçar a nação que o hospedou. Quando surgiu a oportunidade, nos primeiros anos da década de 80, vendeu o que tinha e repatriou-se com a esposa e os quatro filhos brasileiros.

Ainda hoje soa-me enigmática aquela decisão de retornar, uma vez que, meninote, ele justamente deixara as altas terras de Trás-os-Montes para fugir da rotina penosa da aldeia. Agora, voltava para aquele sertão agreste português contrariando os melhores argumentos, obediente a uma ideia irrefreável que só me ocorre chamar de saudade. Saudade da terra que, mesmo inóspita para um gurizote, era a terra que o trouxera ao mundo e nele imprimira tão entranhadamente a marca de ser português.

Minha viagem para lá não tinha passagem de volta. Nosso pai nos levava para o Portugal profundo, rural e, depois descobriria, um Portugal enrijecedor. Mesmo morando fora de um grande centro, eu era um adolescente urbano, acostumado à vida de comodidades de uma cidade. Para onde nosso pai nos degredaria havia uma natureza bruta, um cotidiano de trabalho muscular e uma dieta estranha ao paladar. Hoje reconheço que aqueles anos forjaram muito de minha têmpera, minha resiliência e minha fortaleza ante as contrariedades. Mas, à época, os serviços comezinhos da vida campesina pesavam-me. Tirar esterco das lojas, plantar batatas, regar as lavouras, ripar negrilhos, ir ao feno, colher batatas, fazer a vindima, cortar lenha, juntar castanhas e arrancar torgos. Sempre havia o que fazer. E se não houvesse, havia o vizinho que carecia de mais braços, pois ali vigorava uma ordem comunitária. Lembro-me especialmente do Polícia, de cujo apelido jamais soube a origem. Só me recordo de que não raramente eu era destacado para acompanhá-lo na lida no campo. Ele era um simpático às modernidades. Tinha uma geringonça barulhenta que lhe permitira abandonar a fatigante gadanha na ceifa do feno. Mas a máquina não era perfeita. Precisava de uma peça humana acessória que aliviasse o esforço da ceifadora quando acumulava feno em suas lâminas. E lá passava eu o dia a ser assistente de máquina, a reduzir-lhe o desgaste das peças. Ao final do dia, voltávamos nós três para a aldeia: Polícia asseava a máquina zelosamente, guardava-a na loja e depois me remunerava: oferecia-me alguns cêntimos de escudo, o suficiente para comprar um Sumol.

O trabalho não era a única aspereza do lugar. Exposto ao frio cortante das montanhas portuguesas, meu corpo congelava, não calibrado que estava para temperaturas abaixo de zero. Para piorar, meu pai havia construído nossa casa à entrada do povoado, algo distante da rede elétrica que atendia a aldeia. Demoraram seis meses para que a fiação chegasse à casa. Até então, os banhos improvisados numa banheira no quarto de banho gélido eram um desafio à higiene. O único cômodo que oferecia conforto térmico era a cozinha, onde um fogão à lenha irradiava ondas de prazer em forma de calor. As manhãs eram críticas. Do caminho de casa até o ponto de ônibus, num vale onde as geadas cobriam os lameiros com um manto esplendorosamente branco, meu cabelo umedecido se tornava um bloco rugoso de gelo. Na escola, em Bragança, as roupas não davam conta de aplacar o frio. Lembro que me agarrava aos aquecedores de água espalhados pelos corredores com uma volúpia quase sexual.

O tempo ali se desdobrava ao ritmo dos humores das estações, livre do ditame tirânico dos relógios. Não importava a precisão dos minutos. Enquanto havia luz, havia labor a fazer. Quando o sol se indispunha e o frio lancinante se instalava, buscava-se o abrigo à lareira e cada um preenchia o ócio como lhe aprazia. Sob a pouca luz jorrada pela clarabóia da cozinha, minha avó fiava a própria lã, que depois usava para tricotar meias para os seus. Meu avô se divertia provocando o cão, quando não a própria companheira de dezenas de invernos.

As casas erguidas sobre maciços de pedra denunciavam a ancestralidade da aldeia. Não fossem as reformas em algumas, um viajante do tempo teria dificuldade para se situar na cronologia dos séculos. Por merecer menos atenção de seus donos, os palheiros pareciam ainda mais antigos, com suas paredes expondo a nudez de pedras milenares. Sua função era guardar feno para os dias de chuva ou neve, quando as vacas e ovelhas permaneciam nas lojas. Mas, nas tardes entediantes, os miúdos entravam furtivamente para brincar, mais ainda porque a mera transgressão já era uma quebra da monotonia, uma injeção de adrenalina contra o tédio das horas. À noite, os frequentadores eram outros. Casais de amantes se escondiam ali para a emoção clandestina de instantes de prazer. Sob a discrição da forragem, era como se penetrassem um mundo paralelo, de livre gozo dos sentidos, alheio à língua ferina dos moralistas. Os encontros secretos, porém, logo deixavam de ser secretos, pois as paredes vetustas não guardavam segredo por muito tempo e, de boca em boca, toda a aldeia acabava por assuntar o caso.

Antes que se perguntem, já vou dizendo que nunca usei os palheiros para tal finalidade. Não que não tenha sentido vontade. À época, vivia sob o império dos hormônios da adolescência e sensível às primeiras erupções do amor. Mas o coração escolhera mal. Se não bastasse a inexperiência no mister da sedução, a eleita não tinha olhos para mim. Era um amor que se realizava em minúsculas emoções e grandes devaneios. Um amor que se inflava com o próprio gás de sua frustração. Sem ser retribuído, sua recompensa era a capacidade de sentir-se grande mesmo assim, um amor capaz de bastar-se e sublimar-se no sentimento.

Um dia soube que voltaríamos a morar no Brasil. Meus pais justificaram que teríamos mais oportunidades de vida de volta ao país natal. Acho que concordei. Terminava a viagem de quatro anos ao coração português. Nesse tempo, eu espichara e adquirira um sotaque estranho aos brasileiros. Mas a maior mudança não eram essas coisas mais visíveis. Porque, diferente da maioria das viagens que serve para dar à fala um lustre de erudição e cultura, aquela viagem me redesenhara intimamente. Eu me tornara um jovem enrijecido pela lida, pelo frio e pelo amor incorrespondido. Da mesma forma que as facilidades do mundo moderno têm produzido pessoas pouco resilientes à dificuldade e à frustração – o que explica parcialmente a epidemia mundial de deprimidos, esse Portugal que conheci há 30 anos, rudimentar e simples, me ensinou a enxergar a vida com essa discreta bravura dos transmontanos, para quem viver é aceitar os rigores e os prazeres como a síntese natural e inescapável da existência. Deixei Portugal em 1986, mas Portugal nunca me deixaria. As lembranças desses anos passeiam em mim desde então. Quando os dias ficam amargos, lembro das agruras daquele tempo e me reteso para o desafio. Nos dias em que minha cama foi um palco de solidão, era o amor da puberdade que dançava lindamente em meus sonhos.

Por Luiz Garcia

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