Tem Carnaval em Lisboa?

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Carnaval é no Rio. Quantas vezes esta frase foi escutada, mesmo por quem nunca viveu essa experiência. Fale-se com um carioca que viva fora do país e muitos serão os que dizem que é mais penoso passar o Carnaval longe do Rio do que Natal ou passagem de ano. O carnaval é parte da alma carioca, a celebração máxima de uma alegria tão própria que só conhecendo, e vivendo.

No Rio, o carnaval é feito de duas realidades bem diferentes, ainda que complementares. Uma coisa é o carnaval da Sapucaí, que todos os anos podemos ver na televisão, em que escolas de samba desfilam brilho e alegria numa escala grandiosa. O carnaval de luzes e holofotes, dos camarotes privados e dos bilhetes a preços astronómicos, inacessíveis ao comum brasileiro, reservado a turistas, a ricos e a quem, por paixão, poupa o ano inteiro para viver este momento. Este é o carnaval com que a maioria das pessoas identifica o Rio. Depois há outro carnaval, o dos blocos, da rua, de uma escala humana, onde não há bilhetes nem reserva de admissões, onde cada um apenas tem de se juntar. Este carnaval vem crescendo a cada ano que passa, representando hoje talvez mais a alma do carnaval carioca do que a própria Sapucaí.

Para quem não sabe, um bloco de carnaval é uma espécie de arraial de Santo António versão carioca. O bloco é uma festa de rua, organizada por um grupo, com música (geralmente tocada ao vivo), que pode ir do samba ou maracatu até ao reggae ou ao rock, onde cada bloco se destaca pelo estilo de música ou pelo tema. Há blocos estáticos, que ficam numa praça ou outro espaço público, e blocos que se movimentam pelas ruas, terminando num espaço mais amplo. Na verdade, há blocos para todos os gostos, a todas as horas e num tempo que ultrapassa o próprio carnaval, entre ensaios, pré e pós carnaval. Escolher blocos na semana de carnaval exige uma planificação cuidadosa, dada a quantidade, e pode fazer começar o dia às 5h00 e terminar, enfim, pode o dia até não terminar e juntar com o seguinte. O bloco é o carnaval democrático, de rua, de todos e para todos os que se queiram divertir e fazer do carnaval algo único.

Nunca gostei muito de carnaval, talvez marcado pelas deprimentes imagens de carnaval do norte do país com bailarinas sambando em bikini com 7 graus e a pele engelhada pelo frio. Nada daquilo me fazia sentido e fora esporádicas iniciativas de amigos ou festas sempre vivi o carnaval com grande distância. Isto até viver um carnaval no Rio de Janeiro, onde entendi o que podia ser o carnaval, uma festa de libertação e de alegria, de excessos, de uma espécie de realidade paralela que se vive intensamente durante uns dias. Uma catarse de tudo o que durante o ano nos reprime, nos preocupa. Libertação, talvez seja esta a palavra com que hoje identifico o carnaval.

Lisboa está em mudança com a nova vaga de emigração brasileira e, como tantas outras coisas, este carnaval mostrou bem como essa influência já se faz sentir. Foram três os blocos de rua a sair e a trazer para a nossa calçada um cheirinho a Rio de Janeiro: a Colombina Clandestina, o Bué Tolo e o Baque do Tejo.

O Colombina Clandestina invadiu as ruas de Alfama num sábado de tarde com um sol glorioso que ajudava a esquecer o frio. Muito me lembrei dos santos populares enquanto avançava no bloco pelas ruelas de Alfama. Nas janelas os alfamenses que ainda resistem à invasão do turismo vinham às janelas sorrindo e acenando, com aquele brilho nos olhos de quem vive num bairro onde a festa de rua é imagem de marca e parte da vida. Turistas paravam surpreendidos e disparavam fotografias, superados na surpresa pelo

 

portugueses que circulavam e se deparavam com um espectáculo que não conheciam. A bateria marcava o ritmo, mercados e cafés eram invadidos em busca de cerveja e casas de banho, e o cortejo de fantasias coloridas avançava sambando, até terminar no Largo de São Miguel, palco de tantos arraiais ao som de Quim Barreiros, aqui substituído por uma multidão a cantar “você pagou com traição, a quem sempre lhe deu a mão”, famoso pela voz de Beth Carvalho, e a aproveitar as pausas entre músicas para gritar sonoros “Fora Temer!”.

Já recuperado de sábado, preparei nova fantasia, pois o Domingo era marcado por dois blocos seguidos: o Bué Tolo, na Ribeira das Naus, e o Baque do Tejo, saindo do Príncipe Real.

A chuva matinal não esmoreceu o bloco e o Bué Tolo, de formação recente, terminou o curto cortejo junto ao quiosque e prolongou a festa para além do que era previsto. Com saudações especiais ao sol de cada vez que este aparecia, o bloco tomou de assalto um dos pontos mais turísticos da cidade, espalhando música e glitter (purpurinas) junto ao rio.

Com o prolongamento do Bué Tolo, encontrei o Baque do Tejo já no meio do Bairro Alto, onde o maracatu ecoava nas ruas estreitas e o bloco tinha de abrir à passagem dos carros. Era uma batida imponente, seguido por um enorme cortejo que invadiu o Adamastor no final do bloco. Que melhor lugar para terminar um bloco, que neste terraço sobre o Tejo tão frequentado pela comunidade brasileira e onde a ausência de fronteiras, que caracteriza todos estes blocos, é imagem de marca.

Foi apenas um pequeno cheiro a carnaval carioca, mas imagino que para os brasileiros que organizaram e seguiram estes blocos este pouquinho de Rio os ajudou a superar a distância e as saudades. Para os lisboetas terá sido uma injeção de alegria, mais uma que a cidade teve com esta nova emigração brasileira e que aos poucos vai puxando pelo lado mais solar e divertido, quantas vezes escondido, dos portugueses.

 

Por: João Albuquerque Carreiras

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