Sou uma reencarnação da Carmen Miranda

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A cultura brasileira faz parte de mim há muito tempo. A música foi a minha porta, diria portão, de entrada, através das caixas de vinis das Seleções do Readers Digest que o meu pai comprava e onde comecei a escutar Gal, Bethânia, Chico ou Gil. Depois veio o primeiro concerto de Caetano e a promessa, entretanto quebrada, de assistir a todos os seus concertos em Lisboa. Seguiu-se uma paixão quase obsessiva por Vinicius, começada com o álbum ao vivo em Mar del Plata com Maria Creuza. O Brasil era então uma miragem com um oceano a nos separar.

A música é parte essencial da personalidade deste país, não conheço país tão musical e que tenha dado tantos estilos ao mundo, que em pleno século XX criou a Bossa Nova e que a cada dia reinventa o Samba, o Sertanejo, o Forró, que tirou o Funk da favela para os grandes palcos. Continuo a ouvir os clássicos que me abriram a porta do Brasil, mas acompanho, com dificuldade dada a quantidade, as novas tendências e encontro novas paixões em Marcelo Camelo, Marisa Monte, Silva, ao mesmo tempo que descubro gente como Liniker ou Johnny Hooker.

Quando finalmente visitei o Rio eu, que me achava imune a amores à primeira vista, caí de quatro mal entrei na Vieira Souto e olhei os Dois Irmãos. Não consigo traduzir por palavras, mas há algo de emocionante naquela cidade que logo tomou conta de uma parte de mim, se tornou “pedaço de mim, metade adorada de mim”, como diria Chico. Esta paixão levou a que voltasse ao Rio, me sentindo a cada vez mais carioca à medida que o Cristo me abraçava cada vez mais apertado.

Anos mais tarde, criei a oportunidade de viver no Rio por uns meses, querendo aproveitar para sentir a sensação de ser carioca, de habitar a cidade para além de uma ou duas semanas de deambulações entre centro e praia, para além da paixão fugaz. Aí me senti, com toda a presunção, carioca, absorvendo ainda mais dessa forma de ser tão própria, ao ponto de hoje quando falo com um brasileiro o meu chip mudar fazendo disparar directo um carioquês com sotaque lusitano.

Já na minha Lisboa, tenho vindo a conhecer vários brasileiros que surfaram na nova vaga de emigração, em busca da segurança e tranquilidade que hoje não encontram no Brasil. De forma recorrente falamos das diferenças culturais entre os dois países, das distintas formas de estar e reagir e dou por mim quase a comentar os portugueses como se fosse brasileiro, a reagir como eles, a irritar-me com algumas coisas nossas e com certeza a ser irritante com algumas coisas deles. Nem eu me tinha apercebido do quão colonizado fora pelo Brasil até ter conhecido este grupo e a estar amiúde com eles. Até em coisas que não cabe detalhar aqui, como a atitude perante o sexo e a forma como se encaram as relações, dou por mim a reagir como brasileiro, com um à vontade e descontração que não é, de facto, comum neste país e me chega a fazer sentir deslocado.

Foi numa dessas conversas, acompanhada por alguma cerveja, que me saiu a expressão que dá título a este texto. Realmente, comecei a pensar que não tenho origens familiares no Brasil, nenhum dos meus ascendentes sequer por lá esteve, no entanto, sei que hoje há uma parte em mim que é Brasil. Como dizem meus amigos brasileiros quando se referem aos portugueses e eu contraponho algo: você não conta, não é bem português, você é meio carioca. Mesmo não sabendo se é de facto verdade ou aquele charmezinho brasileiro, a verdade é que nessa noite vi a luz e entendi que, não havendo motivos genéticos, a única explicação possível seria eu ser uma reencarnação da Carmen Miranda. Faltam-me os estupendos chapéus de frutas, pois serei uma versão mais discreta da Carmen, mas como parte brasileiro que supostamente sou, talvez no próximo carnaval saia à rua com meloas, uvas e laranjas na cabeça. Afinal, mesmo que não seja uma reencarnação da Carmen Miranda, é sempre bom homenagear essa portuguesa de Marco de Canavezes que se tornou um ícone do Brasil e do mundo.

 

Por: João Albuquerque Carreiras

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