Sazonalidade

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O alcoólico galopante não concordará com esta crónica. Mas, enfim, nem todas podem ser para ele. E vem à memória, claro, Nicholas Cage, em Leaving Las Vegas, a encher um carrinho de compras com todo o tipo de bebidas. Mas já o bebedor de bem ou mesmo o alcoólico funcional pode colocar-se esta questão, aliás, motivada por um instinto degustativo e pela contemplação das suas experiências passadas: há bebidas para certas alturas do ano?

Algumas bebidas parecem ter resposta óbvia, umas por escaparem a toda a sazonalidade, outras porque estão acantonadas a uma época específica. Veja-se a cerveja de tipo lager. Não obstante beber-se gelada nem por isso deixa de se beber no tempo frio, embora fosse interessante perceber como varia o consumo entre o Verão e o Inverno. De forma muito menos acentuada também há quem beba vinho branco o ano inteiro, mas no que diz respeito a vinhos o mais interessante passa-se com os tintos: mesmo no tempo quente há quem insista em bebê-los e sem o colocar à temperatura ideal de consumo, ou seja, uns agradáveis catorze ou dezasseis graus. Por outro lado, a cerveja preta quase desaparece no tempo quente pois ninguém parece querer saber dela.

É o peso, dizem. Parece que no que toca a bebidas alcoólicas, o consumidor é pouco exigente e vai atrás das suas preferências o ano inteiro, mesmo que as condições climatéricas e o ambiente envolvente não o recomendem. Por isso há quem beba cerveja gelada com frio de rachar e a quem beba vinho tinto a vinte cinco graus ou mais. Um caso preocupante chega-nos com o whisky. Eis uma bebida que deve beber-se com frio. Pessoa que esteja a sentir-se bem, confortável, sem a mais remota sensação de frieza, não deve em consciência pegar num whisky. Exceto, pensam muitos cidadãos, se eu lhes juntar uma ou duas pedras de gelo. O refresco de whisky está por estudar mas é seguro dizer-se que um bom whisky com uma pedra de gelo torna-se refresco. Ou seja, um sacrilégio. Os liberais discordarão. Mas estarão enganados. Já quanto aos whiskies novos é aceitável duas ou até três pedras de gelo, justamente porque com um whisky novo é (quase) aceitável a noção de refresco e o tempo quente sempre foi propenso a loucuras.

A sazonalidade não ataca de mesma forma o consumidor de espaços exteriores e de espaços interiores. Com a melhoria das condições de vida, embora em momentos históricos diferentes, o bebedor civilizado passou a usufruir de temperaturas temperadas durante todo o ano no conforto do seu lar, nas casas de familiares e amigos e no local de trabalho. Assim, todas as bebidas propensas a temperaturas amenas passaram a ser bebidas de consumo continuado ao longo do ano. Estão nesta situação a já referida cerveja de tipo lager e o vinho tinto. É possível viver-se hoje confortavelmente a vinte e três graus todo o ano, o que, apesar de tudo, torna mais apetecível uma cerveja do que um copo de vinho tinto, mas para este último nada como um daqueles pequenos refrigeradores que agora se encontram em conta em todas as grandes superfícies comerciais. Claro que nem todos têm esta possibilidade de uniformização climatérica e além disso sobram ainda os espaços exteriores. Para estas duas situações a reflexão sobre a sazonalidade, seus efeitos e remédios, continua muito atual. Por isso vou deixar-vos com algumas sugestões para lidar com a sazonalidade no que diz respeito a bebidas incontornáveis no nosso quotidiano: a cerveja, o vinho e o whisky (uma vez que creio que ninguém no seu perfeito juízo, quererá beber um gin tónico para além da época maio-setembro, ou seja, a mais de vinte cinco graus de temperatura ambiente).

No que diz respeito à cerveja fora de época não há outra hipótese senão migrar das lager para as ale. É verdade que boa parte das ale se bebem frescas ou mesmo geladas, mas muitas admitem uma temperatura um pouco mais alta, digamos dez ou mesmo doze graus, o que já é perfeitamente aceitável em tempo frio. Estão neste lote a excelente Sagres preta, a Guinness e praticamente todas as stout das cervejeiras artesanais portuguesas. É, pois, uma forma de continuar a beber cerveja durante todo o ano. Claro está que, para quem a cerveja é apenas lager, não há solução possível. No que diz respeito ao vinho, há soluções quer para o tinto, quer para o branco. Um tinto em tempo quente resolve-se facilmente com uma refrigeração cuidada uns minutos antes do consumo ou simplesmente com a colocação da garrafa num frappé imediatamente depois de a abrirmos (embora seja necessário ir controlando a temperatura para o vinho não ficar frio demais). Já um branco em tempo frio dá mais trabalho, uma vez que será necessário encontrar os que se possam beber quase à temperatura ambiente ou seja, aí em torno dos doze graus. Ora isto é muito difícil, mas é possível. Por exemplo, os Vidigueira, Antão Vaz ou Perrum, são vinhos que embora excelentes ao frio são bastante agradáveis a uma temperatura um pouco mais elevada.

O mesmo se diga dos Colares. Mas a verdade é que para os brancos não há grande salvação: a sazonalidade aqui faz das suas e só se salvam os cidadãos que não tenham problemas em beber um branco fresco em tempo gelado. Finalmente, o whisky e a magna questão de beber um bom malte na canícula de agosto. Excluídos os impensáveis seres que bebem malte acompanhado apenas por trinta graus de temperatura ambiente o que equivale a fazê-lo passar pelas provações do Inferno de Hieronymus Bosch, há apenas uma forma de beber um bom malte a temperaturas superiores a vinte graus: juntar-lhe água. Esta simples alquimia, a preferida de Kingsley Amis, nossa autoridade habitual, torna um bom malte num malte ainda melhor, pois abre as suas moléculas às tentações do Verão, convertendo-se num tratado de química para nosso deleite. Uma vez que a água, sendo mineral e criteriosamente escolhida, pode estar gelada, três ou quatro gotas em dois dedos de malte trarão a bebida ao patamar de prazer desejado.

Não esquecer que no caso de malte trufado juntar água das pedras convoca uma experiência sensorial inolvidável.

 

Por: Pedro Santo Tirso

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