Samuel Úria

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“É justo que leves a mal o meu bem:

Andei a cifrar este lado melhor.

Não é resguardo, é desdém pelo que é mais banal,

E saber complicar

É uma prova de amor, afinal.”

“O Muro”

 

Começou na Flor Caveira, uma das mais activas e interessantes editoras dos anos dois mil, de onde saíram nomes que ajudaram criar o caminho para uma “nova música portuguesa” como B Fachada, Os Pontos Negros ou Diabo na Cruz. Hoje é dos mais importantes autores de canções do país, tocadas por si ou por nomes como António Zambujo, Clã ou Ana Moura. Habituou-nos a grandes discos e a músicas intemporais e lança agora um novo álbum, “Canções do Pós-Guerra”, quatro anos depois do belíssimo “Carga de Ombro”. Um novo disco que fala de guerra e de guerras, mas tem o amor como redenção.

 

 

 

Que guerra é esta?

É fácil de explicar, porque não te dou uma resposta conclusiva, mas uma resposta sobre a minha motivação para escolher este título, que é o facto de a guerra poder albergar vários sentidos: pode ser a guerra literal, pode ser guerra ideológica, guerra de sexos, guerras interiores, debate de ideias, etc. E para além deste lado da guerra ser ambíguo suficiente para poder albergar diversos temas dentro de um tema só, no pós-guerra posso também falar em reconstrução, desespero, luto, esperança ou desesperança. Tinha escrito duas ou três canções e apercebi-me que estas canções falavam de conflitos e percebi que, não sendo os mesmos conflitos destas canções, as próximas também poderiam desenvolver este tema muito lato sem ficar refém de um tema muito específico.

É uma guerra que não acabou? Um pós-guerra em movimento?

Sim, é um processo contínuo e é um pós-guerra que remete para algumas guerras que não aconteceram ou outras que são tão presentes que já me fazem entender que mais virão, falando também em guerras do passado. Neste sentido, não está cristalizado em termos cronológicos.

Dirias que este disco acaba por ser uma Polaroid da situação actual em Portugal?

Até se tornou uma Polaroid mais nítida do que aquilo que estava à espera, porque não imaginava que esta pandemia viria. Sobretudo agora, que tenho dado entrevistas e sou convidado a reflectir sobre aquilo que escrevi e a confrontá-lo com o que se passa hoje em dia. Eu não previa que fosse acontecer esta pandemia ou que fosse acontecer uma crise a nível global, pelo menos nada que nos afetasse de uma forma tão significativa e tão visível. Por outro lado, algumas das coisas que me desencantam e que são frutos desta crise, já tinham as suas sementes enterradas, mas visíveis. Ao medir a pulsação do mundo em 2019 – já que escrevi 90% do disco nesse ano – e não prevendo que isto acontecesse, previa que, à mínima crise ou qualquer coisa que nos fizesse mobilizar a todos, não haveria uma grande ordem mundial em torno de paz ou pacificação, ou do que quer que fosse. Percebia já que a volatilidade transformaria as coisas para pior e há inúmeras situações que se vieram a confirmar, nomeadamente o negacionismo da pandemia e da ciência no geral e o aproveitamento populista da situação. Mesmo as questões raciais e as questões sociológicas, foram conflitos que estiveram mais expostos durante a pandemia porque estávamos todos em casa e vimos que o protesto se tornou uma questão de sobrevivência para muitas pessoas. Não fazendo ideia que estes protestos iam acontecer neste período de 2020, era previsível que iria haver tumultos e ideologias em conflito.

E só agora é que estão a começar?

Sim, isto vai continuar.

Vamos ter um pós-guerra em guerra?

Acho que sim.

Guerra não no sentido literal.

Se calhar, também literal. Não se sabe.

Olhando daqui mais para a Europa, onde estamos, seria uma guerra não tanto no sentido literal, mas no sentido de ideias ou de moderação versus não moderação.

Eu acho que no meu tempo de vida nunca foi tão evidente que o conflito de ideias vai ser uma peleja. Mesmo que não haja uma guerra no sentido literal, uma guerra civil, será um conflito aguerrido como nunca foi. Não queria dizer que as pessoas estão extremadas, porque isto seria generalizar um pouco, mas acho que as atitudes estão extremadas, estando o apego ideológico generalizado. Até porque está próximo das pessoas, nos computadores, nas redes sociais. Há uma propagação de ideias e a necessidade de colocar as pessoas ao serviço de uma ideia. Eu acho que, no meu tempo de vida e tendo nascido após o 25 de Abril, nunca foi tão notório.

Sendo da geração pós 25 de Abril, nunca nos confrontámos com a falta de liberdade, já nos caiu como uma coisa adquirida.

Exactamente. E o que é estranho – e é uma coisa para qual eu achava que já tínhamos anticorpos suficientes – é que o discurso da liberdade está de repente refém de pessoas que defendem os ideais anteriores àquilo que consideramos que é a liberdade em Portugal. De repente, há um saudosismo de gente nova que faz um discurso de liberdade em torno disto, que acham que a sua liberdade de expressão está em perigo, e que reivindicações válidas, como o combate à corrupção, são uma bandeira para poder limitar outros tipos de ideais ou ideologias. A própria pandemia foi usada politicamente para isto, para se poder falar sobre isso por causa do uso de máscaras e das limitações de circulação. Isto para mim era impensável e instalou-se de forma quase velada, paulatina, lenta e serena, tornando-se num presente muito perigoso.

O negacionismo em volta de coisas tão óbvias, como o Brasil ter ministros terraplanistas, uma coisa que por cá achamos que já não existe.

Eu acho que cá em Portugal não se vai tão longe, mas… há coisas que eu achava tão básicas e fundamentais, como a terra ser redonda, e que, se calhar, não o são para todos. É curioso, porque de facto é uma curiosidade, que esse reaccionarismo está, muitas vezes, a partir de coisas que até faziam sentido para mim há cinco anos defender, ideias válidas que, de repente, começaram a ser desenvolvidas não em progresso, mas em retrocesso, acabando no estado em que estão.

Acabaste por reflectir um bocadinho nas preocupações que se foram agravando. Ou seja, começaste a reagir a uma coisa antes dela se tornar tão visível cá em Portugal?

Sim, lá fora as coisas já eram mais visíveis com os Trumps, os Bolsonaros e até o Brexit. Uma data de coisas que aconteceram num espaço curto de tempo e que, de alguma maneira, nos fizeram abrir os olhos. Mas a questão do populismo, o mesmo não é tão ideológico quanto possa parecer.

O problema não será a ideologia do populista, mas o facto de ser populista?

Exacto. Por exemplo, na extrema-direita em Portugal, pelo menos naquela que de repente parece ter acesso a algum poder, os cabecilhas não são propriamente figuras que associássemos à extrema-direita tradicional. Há um maquiavelismo na cena de poder cavalgar aquilo que lhes pareceu uma tendência proveitosa para roubar votos, num reflexo do que aconteceu nos Estados Unidos, em Inglaterra ou em França (pelo discurso contra as minorias étnicas após a abertura da Europa aos refugiados). Há claramente um cavalgar de ideais mais inconformistas do que propriamente ideias de extrema-direita, buscando este eleitorado com muita esperteza, o que o torna muito mais perigoso. Se pensar no Bolsonaro ou no Trump, há pessoas por trás muito inteligentes, ideólogos como o Steve Bannon, que promoveram a ascensão de cretinos ao poder, o que me deixa bastante desconsolado. Cá ainda é mais perigoso, porque acho que a ascensão não será dos cretinos, mas dos espertalhões.

O problema é que estes catam o que o vento disser, numa onda que é muito boa para uma minoria e que consegue vender o contrário, numa perversão absoluta, porque não há, ali, nada concretamente a favor das pessoas que vão votar neles, mas sim dessa minoria que os controla.

Sim, e uma das coisas que me aflige é que a reacção de quem está no outro espectro é quase vilanizar todo e qualquer cidadão que de repente comece a comungar destes ideais, não percebendo que há muitos cidadãos que não se sentem representados, muita gente desempoderada, e que sempre o esteve, que finalmente se sente (supostamente) perfilhada por uma ideologia que fala directamente para eles.

Em Portugal, isso vê-se muito no eleitorado de interior, porque a maior parte do sistema político fala só para Lisboa e Porto. Não tens um partido a falar de agricultura, de coisas que interessam a quem está no interior.

E muitas vezes é um discurso operário que começa a parecer genérico porque é antigo e muito igual ao de ’75. E, de repente, há uma actualização do discurso a fazer ao operário, ao cidadão comum, e é um discurso menos centralizado neste aspecto. Tenho esta preocupação de perceber que quem está a emponderar estas pessoas não são vilãs ou pessoas de mau-carácter, é gente mal conduzida por estar desamparada. E muitos destes ideais que estão agora a ser extremados de uma forma grotesca, têm a sua génese em coisas que eu já defendi em determinada altura da minha vida. Tenho esta mágoa em perceber que, por um lado há pessoas a serem mal conduzidas e que quem está do outro lado está a vilanizar estas pessoas e a querer eliminá-las culturalmente de uma forma liminar. Quase a tornar o eleitorado em ervas daninhas.

Acho que ainda não se percebeu como se combate isto, mas acho que já se deveria ter percebido como não se combate. E infelizmente ainda há muita gente que não percebeu.

Está a ser um laboratório perigoso. Por isso é que as respostas ideológicas são perigosas, porque a ideologia está cristalizada em situações já testadas ou em períodos históricos e isto é um período novo.

As tuas letras, na maioria, não são nada óbvias, mas senti que estás a falar para esta geração nas músicas que são mais de intervenção. Gostava de te perguntar se sentes que é um disco de intervenção, apesar de haver muitas canções de amor?

Lá está. Exactamente por eu não ser tendencialmente panfletário, ou estritamente ideológico, ou muito menos político, acho que até na parte do amor há intervenção. Neste sentido, não sendo eu um cantor de intervenção, porque acho que este conceito está conectado com heróis musicais, este pode ser um disco de intervenção. Até na parte gráfica do disco, na selecção da imagem e do lettering que foi usado, há essa homenagem ao lado interventivo que até agora estava concentrado no tempo e que continua a estar, mas que faz falta hoje em dia ver um lado emotivo mais interventivo.

Isso acontece na tua geração com alguns músicos como tu, o B Fachada, o Filipe Sambado.

Com alguma ironia com o título do disco, quase que diria que nós poderíamos nos chamar “pós-intervenção”.

A música ajuda-nos a todos, não só a vocês que a fazem, como meio de combate neste pós-guerra. Não é só ir para a rua manifestarmo-nos, votarmos, mas é também ouvir palavras que nos fazem pensar.

Acho que a consciência social ou política, como queiram chamar, sempre foi um bom ingrediente para a criatividade, sobretudo de quem quer ter um cunho autoral nas suas canções. Este é um tempo em que ressurgiu esse lado de pessoas que querem ter um cunho autoral, que se querem esvaziar nas canções, sem ter necessariamente o bardo romântico que foi imperando, mais ou menos, na música pop. Pode ser um reflexo dos tempos. Não é necessariamente um exercício de sofisticação, isto de querer fazer canções que intervêm e que são socialmente activas e conscientes. Há um lado de homenagem, de gostar desse passado musical e já ter passado tempo suficiente para que isto seja mais do que um exercício retro, é poder haver agora quase que uma necessidade de sermos apadrinhados por estes heróis que nos precederam. Isso nota-se muito no B Fachada, nota-se muito no último disco do Filipe Sambado, essa comunhão com o passado no sentido de que não queremos ser apenas uma nova geração e sim uma geração descendente de um passado que nos orgulha. Agora podemos falar do passado sem ser esse lado reacionário da velha senhora. Hoje em dia podemos falar do passado porque já temos um passado suficientemente estabelecido por pessoas que vieram após isso ou combateram isso. Acho que já podemos ser retroactivos sem falar do Quinto Império e desse lado conquistador e do orgulho colonialista. Já podemos falar do passado sem estarmos ligados a isto. Acho que é o tempo certo para que isso tudo ressurja. E ressurja, lá está, não como um exercício retroactivo, basta sermos cronistas do presente para termos matéria suficiente para escrevermos e estarmos inspirados.

A música de intervenção que tivemos era muito homogénea ideologicamente, a maior parte dos músicos de intervenção tinham pensamentos muito próximos. Acho que hoje em dia algo muito interessante é que não é assim, as coisas que vocês exprimem não são tão homogéneas.

Também temos que pensar que não vivemos no binómio ditadura/liberdade e muitas vezes estas intervenções tinham uma estética próxima que acabava por ser a estética da liberdade. Era aquilo. Tu ouvias o acorde de uma guitarra e, de alguma maneira, já soava a liberdade. Porque não era uma guitarra portuguesa, era uma guitarra com inspiração nas músicas de intervenção francesas, britânicas e do folk americano. Se calhar, havia uma estética mais oficial que agora, porque era necessário que fosse reconhecido facilmente quem estava de um lado e quem estava do outro. Muitas vezes, aquilo que se escrevia de forma escondida para passar pela censura usava uma estética que já te lembrava aquilo se queria dizer. Não é verdade que hoje em dia vivemos em um período de cinzentismos absolutos, mas pelo menos o bem e o mal não estão tão definidos, não estamos a partir do ponto do artista amordaçado e que está a falar como pode. Já estamos a cantar como queremos. Acho que estas circunstâncias também nos fazem não querer fingir que vivemos em períodos de maior repressão do que, de facto, vivemos. Isto pode traduzir-se, lá está, em várias estéticas com muitos pontos em comum, mas que não precisam ser pontos comuns audíveis, artísticos, de escrita ou de mensagem. Até porque, a democratização dos meios com que as músicas chegam até nós, faz com que as referências sejam muito maiores.

“Somos filhos dos novos tempos. Ontem, nunca mais!

Somos pós do pós do pós-pós-modernos. Só pós.”

Quem são “os pós”?

Um bocado daquela ideia bíblica de que todos viemos do pó, mas também porque andamos todos uma vida inteira a classificarmo-nos como seguintes a qualquer coisa. Mesmo que o passo que estamos a dar em frente seja rumo a alguma coisa ultrapassada no tempo, temos sempre a ideia revolucionária sobre as nossas opções, mesmo que seja uma revolução que nos faça regressar a costumes antigos. E depois também há uma questão de teimosia geracional de querermos ser diferentes, pós qualquer coisa. Isso é quase que uma sequela de uma canção que escrevi há alguns anos em que também me classifico como pós isto e pós aquilo, mas que me classifico também como teimoso geracionalmente. Todas as gerações dizem que são teimosas. Até naquela caricatura corriqueira das pessoas que vão dizer os seus defeitos e 90% falam que é a teimosia. Qualquer geração diz isso, mas acham que é muito próprio, muito personalizado. A teimosia é a personalização mais universalista que existe. Neste sentido, a teimosia do “pós” é generalizada, universalista e ao mesmo tempo cada pessoa acha que é particular de si e da sua geração.

Houve três palavras que me saltaram no álbum: ira, raiva e veneno. Mas depois também há o amor. O amor acaba por curar tudo?

Eu quis exactamente deixar esta luz ao fim do túnel, o amor, que é de facto uma redenção, apesar de eu não dizer esta palavra, os dois estão conectados. Este é um disco que parece muito desesperado e eu não sou uma pessoa que vive no desespero. Então quero que a minha música traga esta possibilidade de redenção. Mesmo quando sou crítico, sou crítico. Quer dizer que estou na plena posse de qualquer entendimento do mundo, então se consigo ver o mal é porque, de alguma maneira, estou com o pé fora dele. A parte da redenção, que eu acho essencial, é por eu achar que se estou com um pé fora do mal, se calhar, estou com o outro pé dentro ou já estive nesta posição do mal e a maneira como saí foi por causa do amor. Não foi um amor que eu consegui dar a mim próprio, foi um amor que alguém me deu ou atribuiu. Então acredito que a redenção é possível na medida que somos capazes de amar os outros e puxá-los para fora de um sem número de lamaçais que estão aqui catalogados e taxonomizados. Portanto, acho que o amor é necessário, e muito necessário no disco como o balão que nos eleva.

Perguntei isto porque senti muito as canções de amor como essa luz ao fim do túnel.

Ainda bem. Fico muito contente. O disco fala em veneno e eu acho que era necessário haver também o antídoto. Que é o amor.

Tens algumas referências ao amadurecimento, que não chamarei aqui de velhice porque acho que são duas coisas diferentes. Este é o disco do teu amadurecimento ou achaste interessante refletir sobre este amadurecimento?

Acho que é as duas coisas. Embora seja o disco do meu amadurecimento, não foi colocado de forma intencional. Aliás, a primeira vez que fui confrontado com esta ideia do amadurecimento foi quando li o press release que o Rui Portulez escreveu sobre o disco e que falava exactamente sobre isso. E eu pensei: “o Rui tem razão”. Eu não tinha falado com ele sobre este aspecto, mas com os olhos de outra pessoa consigo perceber isto no meu disco. Houve uma maneira de fazer estas canções, de desenvolvê-las, que de alguma maneira já são fruto de algum amadurecimento. Foi trabalhá-las a partir do seu ponto mais elementar, que era a voz e a guitarra, e levá-las para o estúdio com este esqueleto a tentar perceber onde elas me podiam levar, sem querer agradar estéticas muito presentes ou estéticas do passado que hoje em dia estivessem muito válidas. Este processo de escrita de canções, de trabalho de canções sobre a escrita, de querer ouvir onde a canção vai me levar, não acrescentar nada que alterasse a essência da canção. Foi uma intencionalidade muito grande. E, se calhar, isso é um amadurecimento, uma maturidade, essa ideia de me marimbar um bocado para as expectativas e fazer as canções fluírem de acordo com a identidade que elas possuem na nascente. Por outro lado, por ser um disco que eu estou a escrever à porta de fazer quarenta anos, sendo um disco que estou a escrever no fim de uma década, faz-me pensar que também é um disco de balanço. Sou apegado à memória, mas as minhas memórias tornam-se ainda mais flexíveis cada vez que passamos uma década ou que passam vinte anos sobre alguma coisa. Os números redondos, tanto os meus quarenta anos como o ano de 2020, forçam-me consciente e inconscientemente a esses balanços. E isto pode ser um disco de balanço por causa disto. Não intencionalmente, mas acho que acabou por ser.

Não digo que senti tanto como um disco de amadurecimento porque acho que amadureceste há muito tempo, mas como um reflexo do teu amadurecimento nas letras, até uma reflexão do amadurecimento no amor. Nas canções de amor do disco falas de cabelos brancos, havendo sempre pequenas nuances que fogem do romance idealizado do casal de jovens.

Sim, claro. Não domino completamente o que me estava a passar pela cabeça na altura que escrevi algumas das canções, mas consigo fazer uma leitura da minha intenção. Agora, ao ouvir as canções e fazendo um exercício mental de memória, consigo perceber que neste disco, à revelia do que vinha a ocorrer com os outros discos, quis que o que é irónico não fosse sarcástico, o que é jogo poético não fosse propriamente caricatural nem mordaz, afastei-me de um lado quase humorístico que suavizava intencionalmente mensagens duras. Quis aqui que a dureza fosse dureza, em termos de linguagem poética, e que a leveza fosse leveza. Não jogar tanto com os contrastes.

Mais puro?

Houve mais pureza. Essa pureza era, às vezes, contrariada intencionalmente em trabalhos anteriores. Se calhar, é uma característica que associamos mais aos velhos. Não se mascararem tanto.

Já perderem o filtro.

Também muito.

Em relação ao som, há alguma diversidade. Tens músicas mais à guitarra, que sempre tiveste em todos os discos, mas outras com arranjos interessantes, com sons que remetem ao fim dos anos ’60 ou ’70 e também arranjos de rock à séria.

Isto tem a ver com o processo que eu estava a falar há um bocado. Havia algumas ideias base para as canções, coisas a que eu não conseguia fugir. Se estou a imprimir um certo ritmo à escrita, mesmo na voz e na guitarra, eu sei que aquilo não será uma balada. Isso sim já estava mais ou menos definido. Mas toda a carga instrumental e até de arranjos foi definida em estúdio depois de ouvir muito esse esqueleto inicial. Isso levou-me para caminhos que, embora sejam conotados com coisas que eu já havia feito, resultaram em coisas novas. Por exemplo, o facto de eu ter usado muitos coros, mas não ter entrado para um ideário gospel que era muito comum nos meus discos anteriores, tem a ver com a natureza das próprias canções e não com uma intencionalidade de experimentar outras coisas. A experimentação veio por causa daquilo que a canção me pediu. Por exemplo, tenho as vozes definidas num uivo mais canção francesa do que propriamente o aproveitamento harmónico dos coros das canções americanas que estavam mais na escrita imediata de discos anteriores. Esses exercícios de um som que soasse mais antigo, e que fosse quase para o final dos anos ’60, veio também porque eram canções que falavam do passado, de revisitação, então achei que a sonoridade tinha que ser de revisitação, teria que ter coisas que não fossem do presente. Tive que ir buscar malhas de guitarra que soassem às canções do Roberto Carlos no final dos anos ’60. Foi intencional porque a letra falava sobre isso, assim como o dramatismo da música me puxava para isso. Isto pode parecer muito romântico, mas quando estás a fazer em estúdio é uma coisa muito técnica. Queremos que a canção soe a isto e temos que buscar soluções técnicas para tal. Até o distanciamento dos microfones em relação aos instrumentos reflecte uma ideia romântica que queres passar, mas torna-se absolutamente técnico na conversa que tu tens com o teu produtor e do entendimento que o produtor faz das tuas ideias. Estou a falar de produtor porque desta vez trabalhei mais com um produtor (Miguel Ferreira) do que com um engenheiro de som. Prescindimos da régie e grande parte do disco foi gravado com as coisas montadas na sala de gravações em que havia um diálogo directo entre as coisas que estavam a ser gravadas e o feedback de quem estava a controlar a gravação.

Durante a pandemia foste um dos artistas a fazer lives onde cantaste músicas do disco. Como é que vais funcionar ao vivo?

Sim, fui mostrando uma coisa ou outra nessas lives, mas foi baseado na voz e na guitarra, sem banda. Agora o que vai acontecer é que vou trabalhar afincadamente os temas todos com a banda para preparar os concertos. E o que eu estou à espera, mesmo sem saber se terei muitas possibilidades de mostrar isto ou não, é de uma reformulação musical porque, embora haja temas do passado que eu nunca vou deixar de tocar e nunca sairão dos alinhamentos, venho de uma série de quatro anos a tocar o mesmo disco. Às vezes não tanto por eu querer continuar a tocar o disco, mas porque ele ainda estava a ser pedido e ainda havia público a ser desbravado. O disco teve uma longevidade muito grande. E eu, não estando absolutamente cansado das canções que toquei por quatro anos, tenho uma necessidade de reformulação, e este disco é um pretexto para reformular. Não reformular uma banda, mas reformular a própria maneira como a banda entende a minha música e como a amplifica.

Acabas também por dar uma nova roupagem às músicas antigas.

Sim, é o que vai acabar por acontecer.

Já tens concertos agendados?

Há coisas que já estão marcadas, mas não são tantas como estariam num contexto normal de lançamento de disco.

E claramente as lives não serão o futuro.

Espero que não sejam o futuro.  Se forem a única forma de subsistência, OK, mas espero mesmo que não seja o futuro. Estou a tocar e gosto muito de tocar, mas o elemento humano é imprescindível. Até porque quando estás a fazer lives pelo telefone nem consegues ver aqueles comentários que aparecem em direto e que têm muita graça e são sucedâneos do que pode acontecer ao vivo. Não é a mesma coisa e eu não estou a dar o mesmo quando estou a falar para um ecrã do que daria a uma plateia. Não consigo.

Vai ser um desafio para todos os músicos perceber o que fazer até as coisas voltarem à normalidade.

Não sabemos quanto tempo isto vai durar e não sabemos quais serão as limitações, maiores ou menores, até retornarmos a alguma normalidade. As incógnitas são demasiadas e também percebemos que não é só a redução de lugares, mas também o medo das pessoas. O que é compreensível. Eu tenho público de pessoas mais velhas que compreendo que tenham mais medo e mesmo o público mais jovem que convive com pessoas mais velhas. Há também os factores económicos que não vão influenciar não apenas as programações, mas também o poder de compra de quem adquire bilhetes. Percebo que não seja a coisa mais urgente comprar um bilhete, por muito que a cultura e as artes sejam urgentes, não serão quando alguém deixa de ter dinheiro para pagar a renda ou para comer. Há demasiados factores que tornam isto sombrio e quando é sombrio é no mínimo nublado. Não sei o que vai acontecer.

Acaba por ser um desafio lançar um disco numa altura com esta.

Também seria um desafio não o lançar.

 

Por: João Albuquerque Carreiras

 

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