RETRATOS DO PATRIMÓNIO

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Lisboa 4 – Monos 0

No rescaldo dos 4 – 2 da final do Mundial, sabe bem recordar a recente goleada ocorrida ao longo de mais de um mês, quando quatro importantíssimas decisões, três das quais judiciais, arrasaram quatro crimes Lesa-Património que iriam colocar em risco um mesmo número de espaços, de relevância capital, de Lisboa, dando assim um novo alento a todos aqueles que se batem pela defesa da cidade e abrindo uma janela de esperança de que “alguma coisa está a mudar”! Corria ainda o mês de Maio quando, após uma constestação pública sem precedentes, por deliberação do Ministério Público, o “Mono do Rato”, um edifício que antes de o ser já era tão famoso como a Torre de Belém ou os Jerónimos, mas pelas piores razões, foi definitivamente atirado para o caixote do lixo! Aprovado em 2005 e licenciado em 2010, o processo do “Mono”, abrangeu os mandatos de quatro Presidentes, Santana Lopes; Carmona Rodrigues; António Costa e Fernando Medina e implica directamente os três responsáveis urbanísticos que desde o inicio do século digladiaram ferozmente entre si para ver quem mais “dava cabo de Lisboa”: Eduarda Napoleão; Gabriela Seara e Manuel Salgado. Para além da total falta de senso, e de gosto, em todo este processo, uma autêntica telenovela, houve de tudo, desde grosseiras violações do PDM e flagrante exclusão da área abrangida pelo Plano de Pormenor da Avenida da Liberdade, que acaba imediatamente antes, até à adulteração de números e falsificação de imagens. A recente destruição do simpático prédio “Dona Maria”, que era o primeiro da Rua do Salitre e iniciava uma frente de quarteirão, de onze edifícios, notável e intocada, foi o corolário destes malabarismos. Projectado pelos arquitectos Valsassina e Ayres Mateus para o topo nascente do Largo do Rato, um espaço emblemático onde se destaca o grande Convento seiscentista e o magnífico Palácio Praia e Monforte (que já devia estar classificado) que se encontra arquitectonicamente preservado, pois o único edifício recente, o prédio de gaveto de quatro andares, anos 50, dos Correios, com enorme sobriedade voluntariamente se “apaga” da envolvente, o “Mono do Rato”, pelo contrário, teria um impacto brutal sobre uma vasta zona citadina e nem o facto de esmagar seis (!!!) Monumentos Classificados, pois ficaria paredes meias com o Chafariz setecentista de Carlos Mardel, o Palácio Palmela, a Fábrica Pombalina das Sedas, a Sinagoga e o Prédio Prémio Valmor de Ventura Terra e a Garagem Auto-Palace, também dos inícios do século XX, foi argumento suficiente para, logo desde o início, a Direcção Geral do Património e a Câmara de Lisboa fazerem aquilo que tinham obrigação de fazer. Agora que o processo voltou à estaca zero e uma construção alternativa é economicamente inviável, a não ser que se repitam as ilegalidades e prossiga a telenovela, está nas mãos da CML a possibilidade de, através de uma permuta (como aconteceu com as Torres do Tejo e o quarteirão da Versailles com Abecasis), tomar posse do terreno devoluto e transformá-lo naquilo que toda a gente exige: um jardim! Este jardim daria continuidade ao soberbo jardim suspenso do Palácio Palmela, agora a descoberto, e teria um prolongamento nas árvores de grande porte da Rua Alexandre Herculano. O edificado monumental acima seria valorizado e passaria a ser uma peça fundamental na reconversão do agora caótico Largo do Rato. Nos inícios de Junho surgiu a segunda boa notícia quando se soube que a CML chumbara o projecto, também ilegal e muito contestado, que visava a destruição de um invulgar edifício de meados de oitocentos na Rua do Pau da Bandeira e a sua substituição por um prédio de quatro andares com garagem do arquitecto Gonçalo Byrne, que no seguimento da escandalosa demolição da emblemática casa da família Pereira Coutinho na Rua da Lapa, da também setecentista Casa Nobre que logo a seguir faz esquina com a Rua das Trinas e de uma outra casa datada de 1757 (!), entre muitos outros casos, seria mais um atentado ao martirizado Bairro da Lapa. Fazendo o gaveto da Rua do Pau da Bandeira com a Rua do Prior, o esplêndido Palácio dos Condes de Nova Goa, exemplarmente conservado pelos seus proprietários (e que também devia estar classificado nacionalmente), integra um logradouro composto por um jardim e a referida construção “romântica” de dois pisos, hoje a céu aberto, que inicialmente terá sido uma capela e foi depois a cocheira. Sendo um dos poucos conjuntos Palácio-jardim-cocheira sobreviventes no centro histórico, a decisão da CML, que repete duas outras no mesmo sentido, de obrigar à integral reconstrução, com a mesma volumetria e características, é pois de saudar, estando o Município de Parabéns. Também em Junho os jornais anunciaram com grande alarido aquela que foi a terceira victória, para mim a mais relevante pelo seu impacto histórico, a de que o Tribunal Central Administrativo do Sul, substituindo-se a uma negligenNo rescaldo dos 4 – 2 da final do Mundial, sabe bem recordar a recente goleada ocorrida ao longo de mais de um mês, quando quatro importantíssimas decisões, três das quais judiciais, arrasaram quatro crimes Lesa-Património que iriam colocar em risco um mesmo número de espaços, de relevância capital, de Lisboa, dando assim um novo alento a todos aqueles que se batem pela defesa da cidade e abrindo uma janela de esperança de que “alguma coisa está a mudar”! Corria ainda o mês de Maio quando, após uma constestação pública sem precedentes, por deliberação do Ministério Público, o “Mono do Rato”, um edifício que antes de o ser já era tão famoso como a Torre de Belém ou os Jerónimos, mas pelas piores razões, foi definitivamente atirado para o caixote do lixo! Aprovado em 2005 e licenciado em 2010, o processo do “Mono”, abrangeu os mandatos de quatro Presidentes, Santana Lopes; Carmona Rodrigues; António Costa e Fernando Medina e implica directamente os três responsáveis urbanísticos que desde o inicio do século digladiaram ferozmente entre si para ver quem mais “dava cabo de Lisboa”: Eduarda Napoleão; Gabriela Seara e Manuel Salgado. Para além da total falta de senso, e de gosto, em todo este processo, uma autêntica telenovela, houve de tudo, desde grosseiras violações do PDM e flagrante exclusão da área abrangida pelo Plano de Pormenor da Avenida da Liberdade, que acaba imediatamente antes, até à adulteração de números e falsificação de imagens. A recente destruição do simpático prédio “Dona Maria”, que era o primeiro da Rua do Salitre e iniciava uma frente de quarteirão, de onze edifícios, notável e intocada, foi o corolário destes malabarismos. Projectado pelos arquitectos Valsassina e Ayres Mateus para o topo nascente do Largo do Rato, um espaço emblemático onde se destaca o grande Convento seiscentista e o magnífico Palácio Praia e Monforte (que já devia estar classificado) que se encontra arquitectonicamente preservado, pois o único edifício recente, o prédio de gaveto de quatro andares, anos 50, dos Correios, com enorme sobriedade voluntariamente se “apaga” da envolvente, o “Mono do Rato”, pelo contrário, teria um impacto brutal sobre uma vasta zona citadina e nem o facto de esmagar seis (!!!) Monumentos Classificados, pois ficaria paredes meias com o Chafariz se- [130] [131] te DGPC e a uma CML, carregada de culpas, arrasara de alto a baixo, também em definitivo, o Museu Judaico, um mamarracho indescritível que estava projectado para o Largo de São Miguel, em pleno coração de Alfama! Coroada pela Alcáçova e de braço dado com a Costa do Castelo, a deslumbrante encosta de Alfama que se debruça sobre o Tejo, é o berço de Lisboa. Com uma ocupação com mais de dois mil anos, Alfama conheceu a presença Romana, foi re-desenhada pelos mouros, que lhe deram o nome e a partir da reconquista viveu intensamente a história de Portugal. Resistiu quase incólume ao Terramoto de 1755 e não foi atingida pelo enorme Incêndio que se seguiu e destruiu grande parte da cidade, chegando aos nossos dias praticamente intocada. Nos anos 40 um plano urbanístico criminoso pretendeu retalhá-la “a regra e esquadro” e por isso um grupo de cidadãos, que incluía os mais notáveis olisipógrafos, fundou os Amigos de Lisboa, para que tal não acontecesse. E mais uma vez Alfama foi salva! *ver numero 0 da Revista Embora contendo belíssimas Igrejas, magníficos Palácios e formosos Chafarizes, o que torna Alfama única é o seu todo, um conjunto urbanístico, e também de pessoas, já agora, extraordinariamente homogéneo e conservado, no qual um sem número de becos e de ruelas, que chegam ser tão estreitas que os telhados tocam entre si, constituem um emaranhado sem fim que é também pontoado por pequenos Largos de onde se avista o rio. Por tudo isto, a construção do “Mono de Alfama”, um projecto da arquitecta Graça Bachman, paredes meias com a esplendida Igreja de São Miguel, um Monumento Nacional (!), e que desvirtuaria por completo o Largo fronteiro com o mesmo nome, constituiria possivelmente o maior crime patrimonial em Lisboa desde a selvática destruição da Mouraria em 1946! Inconformada com o facto consumado, a mentora do Museu Judaico, Esther Mucznik, dispara desesperadamente para todo o lado e se num dia inventa à pressa um grupo de amigos do Museu onde, pasme-se, o seu nome e o da referida arquitecta que são fundadoras, estão incluídos, no outro publica um artigo onde com uma lata descomunal afirma que o Museu tem “o apoio entusiástico de milhares de pessoas” quando o que se passa é exatamente o contrário: a população de Alfama não quer o Museu “ali e assim”, um abaixo-assinado para o mesmo efeito reuniu em pouco mais de uma semana para lá de 700 assinaturas e só uma meia dúzia de “iluminados” o defendem, porque com certeza acham que Alfama é sua. Mas não é, como não é só dos Lisboetas ou só dos Portugueses. Alfama é Património da Humanidade! Resta agora à CML, que teve um papel deplorável neste processo, além de pagar as custas a que foi condenada, fazer duas coisas: reconstruir os edifícios que foram parcialmente destruídos (o que é fácil pois estão fotografados) e destiná-los àquilo que sempre foram, habitação local, e arranjar, mas agora com a participação da população, um espaço alternativo digno ali perto para a instalação do Museu Judaico. Porque nunca ninguém pôs em causa a sua enorme mais-valia para Lisboa! A goleada final (4 – 0) concretizou-se já nos inícios de Julho, quando numa decisão muito semelhante à anterior, o mesmo Tribunal liquidou também irreversivelmente mais um mamarracho, que desta vez fora projectado pelo arquitecto Souto de Moura (ou por alguém que se faz passar por ele, pois está nos antípodas daquilo que ainda recentemente defendeu, em excelente entrevista à RTP 2), para a belíssima e integralmente conservada Praça das Flores. Sem qualquer pretensão de aparato, a Praça das Flores, de dimensão razoável, é emoldurada por um casario homogéneo dos seculos XVIII e XIX e tem ao centro um aprazível jardim romântico, assumindo-se como assim um dos mais bonitos postais da Lisboa oitocentista, estando por isso incluída, como conjunto, na Carta do Património da Câmara. Só que de forma mais uma vez vergonhosa, essa mesma CML, violando a sua própria lei e ignorando os pareceres dos seus técnicos, duas práticas que se têm tornado assustadoramente frequentes, decidiu autorizar o referido Mono, que a não ser travado seria uma machadada fatal em tão valioso espaço. Pelo meio fica a demolição de mais uma harmoniosa casa “Dona Maria” (é inacreditável a facilidade com que em Lisboa se deitam a baixo e adulteram edifícios com 200 anos!), uma selvageria que nos traz à cabeça a mediática destruição ocorrida há alguns anos da Casa de Almeida Garrett em Santa Isabel, pois esta da Praça das Flores foi residência de Norte Júnior, um dos maiores aquitectos portugueses com obra relevante em Lisboa. Para além do pagamento das custas judiciais (o que já se começa a tornar um hábito), exige-se agora à CML que obrigue a que a fachada seja minuciosamente reconstruída (o que também é fácil), reparando-se assim uma escandalosa ilegalidade e devolvendo à Praça a sua harmonia e beleza! Estas quatro victórias de Lisboa sobre a ganância de uns e a criminosa cumplicidade de outros, são quatro gotas no oceano da destruição e descaracterização que assola uma Lisboa onde a CML promove o fachadismo fazendo-o passar por reabilitação e onde nenhum recanto, por mais valioso que seja, está a salvo. Mas, como dissemos no início, reforça a nossa convicção de que “alguma coisa está a mudar”! P.S. Os gravíssimos casos do Rato; de Alfama e da Praça das Flores com um desenlace judicial praticamente em simultâneo, mancham vergonhosamente a imagem da CML e em qualquer cidade civilizada levariam, senão à queda do executivo, pelo menos a um pedido de demissão ou à exoneração do responsável máximo do urbanismo. Mas em Portugal a dignidade é um bem cada vez mais escasso e a culpa, quase sempre, morre solteira!.

 

Por: Pedro Mascarenhas Cassiano Neves

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