Quando o Jazz regressa a casa

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Karla Campos nasceu em Belém, a capital do Estado brasileiro do Pará, o mais a norte do Brasil, mas sente-se paulista, e fala com orgulho de um Sul que, segundo ela, “está a moralizar o Brasil”. Refere-se, é óbvio, à Operação Lava Jato, chefiada a partir de Curitiba pelo Juiz Sérgio Moro e que levou à prisão do ex-Presidente Lula da Silva, “um homem que tinha tudo para fazer do Brasil o melhor país do mundo e acabou a lambuzar-se de tal maneira que ficou igual aos que criticava”.

A directora da Live Experiences, que organiza o Lisboa Dance Festival e o EDP CoolJazz, não tem papas na língua, seja para falar do rumo do seu Brasil, seja para explicar como vingou com tanto sucesso num mundo dominado pelos homens. Mas a conversa versará a principal novidade da 15ª Edição do EDP CoolJazz o regresso do festival a Cascais, que levará à Cidadela dois pesos pesados da cena musical mundial: David Byrne e Van Morrison.

 

Nasceu e viveu no Brasil, mas não tem sotaque…

Não. Estou em Portugal desde os seis meses, andando cá e lá, mas foi aqui que cresci e fui criada. Por isso, o sotaque é português (risos).

 

Como é que uma mulher se afirma, com o sucesso óbvio que a Karla tem tido, num meio tão dominado pelos homens como o da organização de festivais, especialmente de Jazz e Electrónica?

Este é um Mundo em que sempre sobressaíram os homens, mas onde existiram sempre mulheres que se afirmaram e realizaram projectos com sucesso. No meu caso, não nego que foi difícil, num meio que continua a ser dominado pelos homens, conseguir afirmarme.

 

Continua a ser?

Claro que sim. Não é por, agora, estarmos num momento bom, woman power, que as coisas mudam da noite para o dia. Há, sem dúvida, uma transformação bastante grande que torna mais fácil às mulheres afirmarem-se, mas ainda há um longo caminho a percorrer. E repare que eu não sou nada de separações, de homens para um lado e mulheres para outro, de maneira nenhuma, doume extremamente bem com homens. Aliás, tenho mais amigos homens do que mulheres. Mas acho que estamos numa fase de maior reconhecimento do papel feminino.

No meu caso, como venho de uma família de mulheres, de women power, talvez me tenha sido mais fácil arriscar.

 

O tempo em que viveu em São Paulo também contribuiu para isso?

Não tenho dúvida. Eu saí de casa com dezanove anos. Os meus pais também se casaram muito cedo, portanto, talvez haja aqui alguns genes (risos) que ajudaram à festa. O meu pai, vindo de uma família de militares e tendo sido aluno dos Pupilos do Exército, foi sempre uma pessoa que nunca subestimou ou desvalorizou as actividades ou a forma de estar das mulheres. Aliás, ele casou-se três vezes, portanto (risos)… Além disso, tem três filhas mulheres e dois homens. Por isso, acho que cresci num ambiente em que o papel da mulher era reconhecido.

Quando decidi trabalhar neste meio, sendo mulher, sabia que seria difícil, mas ao fim de quinze anos, neste caso do EDP CoolJazz, acho que já percebem que efectivamente o festival faz sentido, tem espaço, é um formato único e que acrescenta valor àquilo que eu criei. Na eletrónica, também há muitos homens, mas também há muitas mulheres…

 

Cada vez mais, aliás.

Cada vez mais.

 

E no jazz também.

E no jazz também O EDP CoolJazz não é um festival exclusivamente de jazz. Tem uma mistura de sonoridades e acompanha a evolução e a forma de estar na música. Os festivais nunca são específicos de um estilo musical, de um nicho, porque cada vez mais os músicos acabam por circular em vários estilos da música e os cartazes dos festivais reflectem isso mesmo.

No caso do EDP CoolJazz, é um festival mais vocacionado para o jazz, o soul, o R&B, o funk, a música brasileira, porque a bossa nova e a música brasileira cruzam muito bem com o jazz e com o soul, não esquecendo a pop, que começou lá atrás e que inspira muitos artistas que estão hoje a tocar. E o exemplo disso é este ano a vinda do David Byrne, um artista que é difícil de rotular – ele está na pop, mas também está na new wave, mas também tem uma musicalidade muito tropical, tem muito de world music. Além disso, é um artista dedicado à arte em geral, não só à música, porque também é um performer, escritor, actor. É, de facto, um artista muito completo e este concerto é muito isso.

 

Sei que já assistiu ao concerto.

Já vi, já vi. É um grande espectáculo. O David Byrne é um músico que eu adoro e que é um ícone, e desde que organizo o EDP CoolJazz que faz parte da minha lista, da minha set list, mas não tem havido oportunidade, ou porque não tem agenda, ou porque não tem conteúdo suficiente para fazer uma tournée, e, por isso, agora que ele, com este disco novo, está num momento tão especial da carreira, tê-lo por cá é um privilégio.

 

Vai ser um momento alto?

Vai ser um momento alto. Eu diria que um momento alto em Portugal, com toda a modéstia. Um momento muito importante deste músico em Portugal e do EDP CoolJazz que celebra a décima quinta edição.

 

Regressando a casa, a Cascais, onde começou.

Exacto. Para mim é muito importante o cartaz do festival, é a base, mas o espaço onde decorre é igualmente importante. Nos festivais que organizo, o Lisboa Dance Festival e o EDP CoolJazz, o espaço é outro artista, porque o cenário em consonância com os artistas é o que faz o todo, é o que faz o espectáculo. Por isso, o espaço também é um artista. O EDP CoolJazz é um festival mais intimista, com mais proximidade das pessoas, e com a duração de um concerto, de uma hora e meia ou duas horas. Estamos ali concentrados a ver aquele concerto, a ver aquele artista naquele espaço, e não estamos a ser sugestionados para ir ver outra coisa qualquer. Este festival é focado para um artista de cada vez, não há simultaneidade. No início, havia só um concerto por noite. Depressa percebemos que era a mesma coisa que ir ao Coliseu ou ao CCB, o que era uma pena, porque acontecia no Verão, ao ar livre, em espaços belíssimos, na maioria Património Nacional. Então, decidimos fazer as pessoas permanecessem um bocadinho mais, acrescentando artistas, normalmente portugueses, que actuavam antes dos artistas principais, aquilo a que chamávamos primeira parte.

Mas, neste momento, a música portuguesa cresceu tanto, e estamos com uma qualidade e com uma popularidade tão grande, que custa muito dizer que o artista A faz a primeira parte do David Byrne. Não. Estamos a falar de dois concertos independentes que acontecem na mesma noite. Aliás, agora são três, porque, como abrimos as portas às 19h, temos, na zona de alimentação, um palco que se chama Cascais Jazz Sessions, onde diversos músicos nacionais tocam a partir das 20h. São trios de jazz portugueses que vão interpretar os seus originais ou standards de jazz. Por isso, entre as oito e as nove, nove e um quarto, as pessoas vão chegando, comendo, convivendo, com a oportunidade de ver, ao vivo, músicos portugueses a tocarem standards. Isso é muito importante para dar palco a esses talentos, muitos deles artistas que tocam em bandas de outros músicos portugueses, como da Luísa Sobral, da Ana Moura, mas que têm imenso valor, todos eles formados ou pelo Hot Club ou pela Escola Superior de Música. Só depois as pessoas se dirigem à sala principal, que é o espaço dos concertos do festival, o palco do EDP CoolJazz, onde no caso do dia 11 de Julho, vão assistir a um concerto da Sara Tavares, que estreia no festival e que foi uma escolha pessoal de David Byrne. Só por aí se percebe que o conceito de concerto principal e secundário deixa de fazer sentido, porque juntar Sara Tavares e David Byrne, na mesma noite, resulta numa explosão musical. Não tenho dúvida.

Outro nome que, há muito tempo, queria trazer ao EDP CoolJazz é Van Morrison. O Van Morrison é um músico de excelência, incontornável no meio do jazz e do blues e que tem uma discografia gigante. Só no ano passado lançou dois discos e este ano já lançou mais um. Ele não faz muitos concertos fora de Inglaterra e, por isso, conseguir que viesse a Portugal, este ano, foi uma bênção. (Risos).

É um ano com um grande cartaz. Além destes dois nomes incontornáveis, temos a Norah Jones, que já é quase residente do EDP CoolJazz, porque já veio noutras edições, e que regressa num momento em que acaba de lançar um novo disco produzido pelo Ronnie Scott, e depois aqueles outros concertos que eu gosto sempre de trazer para mostrar artistas que já estão a ser falados a nível mundial, como é o caso de Jessie Ware e de Jordan Rakei. A Jessie Ware é soul, com um bocadinho de disco, de funk e de dance, e o próprio Jordan Rakei também actua muito nesse registo. E temos o Salvador Sobral e muitos, muitos mais.

 

Voltemos a este regresso a Cascais.

Este retorno a Cascais é um combustível que vai dar ainda mais power ao festival, desde logo, pelas Cascais Jazz Sessions, o tal warm up antes dos dois concertos no palco principal, mas, depois, porque alargámos a programação com o Cascais Lazy Sundays, que começa dia 1 de Julho e que estende o festival além das tradicionais sete noites, para as quais tem de se comprar um bilhete. Foi uma forma que encontrámos de permitir às pessoas que não vão aos concertos do EDP CoolJazz, no palco principal, poderem usufruir gratuitamente do espírito do festival. Portanto, durante os cinco Domingos de Julho, ao final da tarde, vamos ter uma série de gente conhecida, jornalistas, programadores, divulgadores e músicos a passar o som de que gostam: o Kalaf, o Vítor Belanciano, o João Tenreiro, a Mónica Mendes, o Davide Pinheiro. Portanto, o caminho é fazer, do mês de Julho, o mês do EDP CoolJazz. Neste momento, nós estamos com doze dias, mas o objectivo é chegar aos trintas e um (risos), e acho que vai ser possível, porque essa é a intenção da Câmara de Cascais ao receber o festival de volta. Vamos continuar a crescer, sem nunca perder este formato de intimidade, de proximidade, de exclusividade, de nunca haver concertos em simultâneo, que é o que torna o festival único.

 

Por: João Moreira

Foto: Hugo Macedo

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