Devemos cumprir prazos. Os prazos mantêm o mundo a girar. O pão que chega a tempo, o casamento que se celebra e por aí vai. Sucede que nem sempre é possível cumprir prazos. E aí devemos assumir e confiar na Providência. Eu já tinha perguntado ao meu paciente editor para quando era o texto desta Bica e ele respondeu lacónico: 10 de abril.
Sabia que ia ser difícil, mas meti-me ao caminho. O mais importante já tinha. O tema na cabeça, a necessidade de, à semelhança do que aqui fiz há dois textos, proclamar a margarita a bebida deste Verão. Estas proclamações são importantes. Alinham-nos com as estações e alinham os nossos amigos connosco, já sabendo ao que vêm. Além disso, dão um bom texto sobre os espíritos que bebemos e nos alimentam. Determinado, pois, a proclamar a margarita a bebida da estação quente de 2018, dei por mim a braços com o prazo e o prazo foi ultrapassado, entregando-me a Providência (e a benévola brandura do meu editor). Fui, contudo, recompensado. A 14 de abril, Miguel Esteves Cardoso publica no Público, na secção Fugas, uma crónica intitulada “A margarita revisitada: é saborosamente chocante como fica melhor sem Cointreau, com xarope de agave” e este meu texto mudou completamente.
O MEC é para mim uma autoridade. É uma autoridade no sentido próprio do termo. Está autorizado a falar sobretudo e a minha atenção para ele é sempre completa. Desde alcatifas, à lealdade, chegando agora às margaritas, se o MEC escreve presumo sempre que tem argumentos que me interessam conhecer. Mesmo se não concordo. O que é aqui quase todo o caso. E foi isto que mudou a história do meu texto. Ia ser um e por divina intervenção de MEC tornou-se outro. Vamos a isto!!
Ao contrário do que sucede com os cocktails que têm o gin por bebida nuclear, não cheguei à margarita pela tequila. Cheguei pelo sumo de limão. O sumo de limão é uma bebida destinada a misturar-se com outras para o progresso da civilização. Se é verdade que poucos suportam bebê-lo puro e talvez não fosse melhor o mundo em que isso sucedesse regularmente, é ainda mais certo que precisamos das características do sumo de limão misturadas numa bebida à sua altura. E foi assim que cheguei à margarita, reflectindo. Não que não tenha bebido várias margaridas irreflectidas. Fi-lo, confesso. Mas quem nunca? Deixei porém essa experiência lá atrás, na leveza da adolescência, e só reencontrei a ideia da margarita na consideração do fruto do limoeiro.
Quando se tem tanta abundância de limões quanto eu, é difícil não darmos por nós a considerar formas de lhes dar uma vida condigna, ao invés de uma existência na podridão. Tentei o “lemon curd”, mas não me dou especialmente bem com doces (embora seja uma ótima ideia para quem gosta de scones e chá, enfim). Tentei mousse de limão, mas não me dou especialmente bem com mousses (embora seja boa ideia para corresponder ao ocasional convite para jantar). Tentei, enfim, a bebida. Digo-vos que não foi um caminho fácil. O que não falta, é certo, é um mundo de bebidas que se podem elaborar com sumo de limão. Mas sempre muito pouco, muito pouco. A justa repartição entre um bom espírito alcoólico e o sumo dos meus soberbos limões escapava-me. Até que, dos confins das minhas memórias, ouvi a margarita chamar. Isso e porque contemplei uma velha garrafa de “Tres Sombreros”, que estava dormente na prateleira do bar da Casa do Limoeiro. Pensei: consideremos a margarita. Comecemos pelo princípio, sem complexos nem pressões, mesmo sabendo que em campo está Miguel Esteves Cardoso. O mais importante da margarita, como cocktail que é, mesmo levando em atenção tudo o que vos tenho dito, não é nem tequila nem sumo de limão, mas a combinação criativa deste dois elementos e a adição das laranjas através de Cointreau. Ora esta premissa de abordagem à margarita dita a minha divergência com a doutrina de MEC. Aqui começa a discórdia. MEC claramente prefere uma margarita que puxe pela tequila o mais possível, sendo os demais ingredientes satélites em seu torno. Contesto isto. Contesto isto com toda a minha alma. Lá onde estiver o inventor da margarita, por mais homenagem que tenha querido fazer à tequila, quis inventar algo novo com sumo de limão e um bom licor de laranjas. E confesso que as laranjas trazem ânimo e desafio à combinação. E, assim, logo à partida estamos conversados.
A opção entre uma tequila branca ou dourada só pode tomada pela condição do momento. Duvido que exista ser humano que se condene a uma existência perpétua de margaritas feitas apenas com um tipo de tequila. Sendo a diferença entre ambas a adição de uma tequila um pouco envelhecida (reposado) a uma tequila branca nova por alternativa à não adição, e sendo essa diferença responsável por um sabor mais adocicado no primeiro caso, não é possível fechar-se a margarita na monogamia de uma infundada relação. Para mais, com preferência pela tequila branca, como sugere MEC, e é contrariado por José Cuervo. Quantas e quantas vezes, surgindome no espírito a vontade de uma margarita não veio ela acompanhada de uma clara visão de tequila dourada, em antecipação desse sabor mais variado e da transfigurada riqueza que traz à margarita? Há, por isso, que tomar posição e aqui ficará justificada a divergência que anotei, ao ler MEC no Público. Para mim, a margarita é uma grande invenção por ser uma bebida aberta à ponderação do limão. Mais do que em quase todos os cocktails conhecidos pela humanidade, o jogo das proporções é na margarita um jogo de ponderações entre agave, madeira, limão e laranjas. Ora, MEC quer que a margarita se resuma a agave com um toque de limão. E isso é um atentado à margarita e a todos os nomes próprios no período pós-Kripke e Putnam. Se é uma margarita, então é sempre um convite à nossa melhor combinação de sabores de tequila com a correspondente resposta do limão e das laranjas. Substituir o Cointreau por xarope de Agave recomenda-se apenas aos mais fanáticos deste cacto, e sempre recomendando que se invente nome distinto.
Tudo está na proporção dos ingredientes que mereceram o batismo e eu tenho vivido com duas variantes, tanto quanto a memória me garante.
A primeira e que mais recomendo é também a que recomenda Kingsley Amis, para não ficarmos áridos de autoridades. É simples no seu 3, 2, 1 de ponderação, com três partes de tequila, duas partes de sumo de limão e uma
parte de Cointreau. Tem de ser Cointreau ou então mais vale irmos pelo MEC e deixarmos cair as laranjas. O que não pode aceitar-se é substituir o Cointreau por um triple sec manhoso. Esta combinação deve ser feita com tequila branca e ser acrescida de umas duas ou três gotas de Angostura Bitters, antes de agitar, o que descobri ser um ótimo tónico. Esta é a receita que tem feito sucesso junto de palatos amigos, incluindo o meu próprio. Claro que se estivermos com vontade de algo mais agressivo, mas também mais sofisticado, recomendo duas partes e meia de tequila reposado (Herradura, por exemplo), duas de limão e meia de Cointreau. Ou até mesmo substituir de todo o Cointreau por duas ou três gotas de Angostura. Em qualquer caso o importante, no que concordo com MEC, é que a tequila seja boa e por isso experimentada à temperatura ambiente em busca do sabor agave em medida justa. Também funciona com um bom mezcal. Já os limões, não tendo como ceder-vos os meus, peço apenas que sejam conhecidos. Limões desconhecidos, comprados em supermercado, estragam qualquer margarita.
Mas se é para fazer como MEC, e sem pejonem pudor puxar um ingrediente à ribalta em detrimento dos outros, então que seja o limão a ter protagonismo. Há uns tempos descobri o Limontejo, que é um limoncello do Alentejo. Esta estupenda ideia, em linha com o gin Sul, que é feito de ervas portuguesas e destilado em Hamburgo, veio da cabeça Francesco Catucci e em boa hora. Os limões alentejanos produzem um licor maravilhoso e a receita italiana faz o resto. Daí ter inventado, o que posso agora denominar de gertrudes, que no fundo é uma margarita onde se substituiu o Cointreau por Limontejo. O resultado: magnífico.
Terminemos como começámos, com autoridade. Lembra Kingsley Amis que não há como negar: a margarita é uma das mais deliciosas bebidas do mundo, “but por Dios, Señor, watch it!”. O mesmo com a gertrudes.
Por:Pedro Santo Tirso