OUR LADY, AMONG US

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Fátima, altar do mundo. No altar realizam-se sacrifícios. Palavra dura quando ouvida, carregando dor, peso, pena ou penas. No entanto, a profundidade do sacrifício significa tornar algo sagrado. Mais do que uma distinção com o profano, simplesmente é acentuar a força do transcendente em cada realidade que evoca o eterno. Pode ser uma imagem. Simples, kitsch, colorida, clássica, moderna ou antiquada, as imagens religiosas transportam para a fé ou preconceitos. Fico-me pela fé. De norte a sul de Portugal cruzamo-nos com imagens de Nossa Senhora de Fátima. O ar cândido e etéreo recorda o encontro com os Pastorinhos. Do nada, aos poucos, cresce a vastidão de gente que se aproxima, em muitos tons de inquietação e interrogação em busca de milagres, dessa terra sem tempo. “É mais fácil falar à Mãezinha do Céu!” “Ela é nossa e guia-nos!” “Tão boazinha!” As palavras simples mostram o afecto da fé. Mas, será apenas de gente humilde? A vastidão da diversidade social caracteriza os caminhos que levam milhares até onde velas se acenderão e serão elevadas em noites de 13 de Maio a Outubro. Durante o dia, vêem-se as flores florescidas, rodeadas de desejo de esperança.

 

A devoção mariana é muito antiga. Para afirmar que o Filho das suas entranhas é o próprio Deus, os padres do Concílio de Éfeso, em 431, decretaram o dogma conhecido por Théotokos. Maria é a Mãe de Deus. Esta carga teológica é pesada para os humildes que nada percebem desse intelectualismo. Interessa a proximidade, que leva ao espalhar de muitas “Marias” ou “Nossas Senhoras”. Em Portugal, Fátima é a grande referência, mas… não se pode esquecer a Senhora da Conceição, padroeira do nosso país, a Senhora do Sameiro, a Senhora da Nazaré, a Senhora da Penha, a Senhora do Perpétuo Socorro, a Senhora do Loreto, a Senhora da Assunção, a Senhora do Carmo. Se sairmos do país, muitas mais vamos ainda encontrar. No entanto, Maria é só uma. A necessidade de encontrar muitas perspectivas identifica-se com os estados de sentir da vida ou de histórias de encontros e milagres. Para muitos, lenda, historietas sem sentido, oportunidades de negócio. Para milhares, os santuários marianos são como pontos de encontro de Paz individual e comunitária, de recolhimento, deixando que a sombra do sem sentido seja iluminada pela fé dos que não se cansam de buscar e questionar, pondo-se a caminho.

Horas ou quilómetros de estrada e de silêncio. Acena-se à passagem de um colega, quem sabe amigo, de lá ou de cá, cúmplice desses silêncios prolongados acompanhados por Nossa Senhora de Fátima. Como bom português, há que tê-la por perto, enquanto fita o caminho dando bom augúrio à viagem. Guio e sou guiado quando me faço à estrada, transportando memórias e saudade. Atravessar o mundo é também atravessar-me, dando-me conta do altar que sou. Será que celebro em mim a grandeza da vida? Sigo em silêncio, umas vezes forçado, outras desejado de modo a aceder ao mistério da fé. A fé é ela mesma dinâmica, de caminho peregrinado em busca do que levo dentro e posso dar. O volante torna-se bastão orientador até à entrega final. A fé é ela mesma serviço. Esse serviço dinâmico aproxima mundos, “para ver a verdade para perder o medo” como afirma Sophia no seu poema “Para atravessar contigo os desertos mundo”. No final da viagem descarregarei cada encomenda, até ficar vazio e livre, e contarei as peripécias. Ou o silêncio de uma oração.

 

– Podes ir pondo a mesa. O almoço está quase pronto.

– Já vou.

– Vais agora! Sempre a mesma coisa! Chama a tua avó!

– Vó, vamos comer.

– Oh, filho, já viste que vendem Nossas Senhoras pela televisão? Há que tempos não vou a Fátima. A última       vez foi numa excursão organizada pela Junta. Cheguei lá e chorei. Chorei tanto, tanto. Lembrei-me do teu avô, havia pouco tempo que tinha morrido. Rezei o terço. Dizem que rezar o terço faz bem, aliviando a saudade. Às vezes tenho dúvidas se alivia mesmo. Já não sirvo para nada.

– Lá está a avó com isso.

– É verdade filho, de que adiantam os velhos? Tenho a sorte de estar aqui em casa. Quantos não estarão sós, a desejar morrer por sentirem na pele o abandono e tendo a televisão como única companhia? E, como se vê, vendem Nossas Senhoras. Ai a fé. A fé que nos valha.

– O almoço está pronto!

– A Vó sempre terá aqui mesa. Sempre.

 

“O Verbo fez-se carne e montou a sua tenda entre nós.” É assim que S. João marca a encarnação. Na densidade da sarx, a humanidade deixa de ter separação com a divindade. As marcas de corpo falam de quem se é, em história e em presente que se abre também ao alto. A carne do mundo é espaço de Deus. Cada ser humano em corpo não é um objecto a descartar, senão a totalidade de quem se é. Deixa de haver acepção de pessoas em Deus, já que toda a carne humana é chamada à participação divina. A figura de Maria torna-se relevante para essa participação. Do seu sim, as entranhas fazem germinar vida apesar das tantas perguntas silenciosas que a acompanham na vida. No entanto, diznos S. Lucas que Ela guardava tudo no seu coração. Liga-se o alto de cada pessoa ao alto dos céus: o olhar de Maria que recorda a profunda passagem de Isaías: “Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria. Eis que Eu gravei a tua imagem na palma das minhas mãos.”

 

Em cada canto um canto, irrelevante sem que se dê conta. Mas ali está. Onde andarão cantos desses na história de cada pessoa? Muitos revestem-se em tons de roxo, invocando dores. Ou simplesmente a humidade em casa humilde. Deus é dos simples.

 

No final de tarde sentou-se na esplanada. Pediu tremoços e uma mini bem fresca. De início, queria estar sozinho e deixar passar o tempo e o calor que não o deixava pensar. Aparece sempre mais alguém. Galhofa, palavrão, anedota, três gargalhadas e alguém saiu-se com esta:

– Já repararam que o santo tem uma espada?

Fitámos os azulejos. Tantas vezes ali parou e nunca tinha notado a espada. E as vestes. E os pastorinhos. E o brilho da santa. Damos tudo por adquirido e não reparamos.

– Para que será a espada?

– Vai ao google. Lá diz tudo.

“são paulo espada”

– O homem foi decapitado pela fé.

– Como aqueles pelo Estado Islâmico?

– Ainda se morre por se ter fé?

Recordou quando viu as imagens de cristãos a serem decapitados. “Ainda se morre pela fé Não será tudo uma estupidez? Rapidamente diz-se que sim, mas aquela gente aguentou firme. A fé não pode ser uma estupidez. É demasiado arrogante afirmá-lo assim tão cruamente.”

– Oh, homem, acorda!

Sorriu. Já se falava do resultado do último jogo. Galhofa, palavrão, anedota e três gargalhadas. Ainda se vive pela fé na amizade.

 

Ser-se turista é “picar o ponto” sem se deixar transformar pela terra. Fica-se pela simpatia do lugar ou “wow” perdido em centenas de fotografias. Compra-se o íman de recordação e memória dessa passagem, até ficar outro na porta do frigorífico. Mais do que turistas, precisamos de viajantes. Gente que busca o centro, a profundidade dos costumes, permitindo-se transformar por eles e, assim, abrir horizontes.

Maria, sem problemas, coloca-se em segundo plano. Desde aí, observa e deixase ser Mãe e não a “santinha milagreira”, como recordou o Papa Francisco na peregrinação a Fátima há um ano. Maria é atenta. Na festa das bodas de Canaã reparou que já não tinham vinho, ficando assim impedidos de continuar a alegria de quem enlaça o amor. A festa da vida tem de continuar e Maria assegura-a com a brilhante frase: “fazei tudo o que Ele vos disser”.

 

Por: PAULO DUARTE S.J.

Foto: RODRIGO CABRITA

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