Houve um tempo em que as catástrofes naturais e as pandemias, como esta que estamos a viver, eram justificadas como castigos de Deus. Ainda há poucos anos um dos nossos ministros justificava assim as inundações de Albufeira.
Foi o Terramoto de Lisboa em 1775 que alterou a forma de olhar para estas catástrofes. Rousseau, um crente da Razão, quis mudar o paradigma das responsabilidades. Numa carta que escrevia a Voltaire, ele tomava o Terramoto de Lisboa como o grande exemplo de entrada na Modernidade. Dizia nessa carta que os grandes desastres e as imprevisibilidades se deviam ao poder da razão e á falta de prevenção. E acrescentava: “mostrei aos homens como eles eram e causa da sua própria infelicidade e em consequência como poderiam evitá-la”.
Rousseau tira a responsabilidade da Natureza ou da vontade de Deus e entrega-a nas mãos dos homens. Para ele não havia acasos, imprevistos, mas falhas, incúria, incompetência e omissões. Dá que pensar e passados tantos anos! Tudo está nas mãos dos homens e se não podemos evitar devemos prevenir e estar preparados na hora da batalha.
Eu penso que o Covid-19 deve merecer-nos uma profunda reflexão, não apenas do poder político, mas de todos os outros poderes e de nós próprios como pessoas individuais e cidadãos.
Percebemos que muita da responsabilidade pelo maior ou menor impacto desta pandemia tem a ver com o comportamento de cada um de nós. A ideia de um governo que pode tudo, que a política é feita apenas pelos partidos e que não existem cidadãos deve ser melhor pensada! Mas há muitas outras coisas que merecem ser repensadas, a irresponsabilidade de um ou dois indivíduos pode matar milhões, dentro e fora da sua cidade. No nosso caso concreto, valorizámos demasiado os direitos e esquecemo-nos das responsabilidades para com nós próprios, família e os outros.
Por isso estou a falar de um Ritual de Passagem, porque depois disto, muita coisa vai mudar, a começar por nós próprios. Estamos e devemos entrar em avaliação! Nesses rituais de passagem, a primeira batalha é separarmo-nos da vida anterior. Foi isso que aconteceu, está a acontecer! A segunda batalha é o isolamento da sociedade, o intervalo das nossas antigas relações. É o regresso a casa, á família mais próxima, á nossa fortaleza. Estamos também a viver essa batalha! A terceira batalha é o nosso regresso aos mesmos lugares onde antes circulámos livremente. É como voltar ao lugar da infância passados muitos anos! Tudo parece mais pequeno, nós já não somos os mesmos e crescemos…Esta é a batalha decisiva e onde se ganha ou perde a guerra! Nós não voltamos ao mesmo, isso já passou…O resultado não pode ser para que tudo continue igual, mas para que seja melhor, a lição só pode ir nesse sentido…
E o que é ser melhor? É acabar com a ideia de que podemos estar sozinhos com os nossos direitos e esquecer os direitos dos outros; é não alienar a nossa opinião e dar o poder de todas as nossas decisões aos outros; pensar que não há acasos, mas falhas, incúria, incompetência, omissões e onde nós podemos também ser responsáveis, por falta da nossa própria responsabilidade… É voltarmos a Ser e não viver para Parecer.
Assim tudo mudará, mas para melhor, porque tudo será diferente!
Jorge Marques