Obra Visitante: Rembrandt, «Autorretrato com Boina e Duas Correntes»

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Na iniciativa Obra Visitante, o Museu Calouste Gulbenkian acolhe obras de arte de museus de todo o mundo, provocando diálogos inéditos, e por vezes inesperados, com obras da exposição permanente. A primeira Obra Visitante, que nos chega do Museo Thyssen-Bornemisza, em Madrid, foi realizada c. 1640 por Rembrandt van Rijn.

Autorretrato com Boina e Duas Correntes exemplifica um dos temas preferidos do pintor holandês – a representação de si próprio, vestindo a pele de personagens diversos.

Esta obra convive lado a lado com as duas pinturas de Rembrandt compradas por Calouste Gulbenkian, Figura de Velho Palas Atena, na sala dedicada à pintura holandesa.

REMBRANDT POR REMBRANDT

A obra de Rembrandt (1606-1669), que ascende a mais de trezentas pinturas e cujo legado artístico permanece como um dos mais poderosos da arte ocidental, inclui cerca de quarenta autorretratos. Nesta categoria é possível identificar, desde o final da década de 1620 até ao ano da sua morte, numa produção muitas vezes intrigante, diversas subcategorias ou grupos de composições, nas quais o artista assume, deliberadamente, papéis distintos.

Rembrandt começou por se fazer representar, num primeiro momento, bastante fiel «à sua imagem», de forma deliberadamente convencional. Uma questão relevante para a compreensão dos autorretratos relaciona-se com o facto de o pintor, a partir de 1629, ter propositadamente manipulado a sua imagem num número significativo de autorretratos.

O recurso a adereços exóticos veio também a dar origem a uma categoria de figuração que oscilou entre o retrato à l’antique e o retrato «à oriental», nem sempre de fácil diferenciação. Entretanto, Rembrandt poucas vezes se apresentou de maneira formal, à moda da época, cabendo essa exceção a Autorretrato do Artista como Burguês (1632, The Burrell Collection, Glasgow).

Particularmente reveladora para a compreensão dos autorretratos é a representação de Rembrandt com indumentária distintiva da sua profissão, tipologia de composição que nos conduz à representação do pintor como motivo de pintura. O Pintor no Ateliê (c. 1628, Museum of Fine Arts, Boston), provavelmente uma recriação bastante fidedigna da oficina de Rembrandt, transporta o criador para o espaço (mental) de criação.

No fim da vida, por volta de 1665-1669, o pintor viria retomar uma vez mais o motivo em Autorretrato com Dois Círculos (Kenwood House, The Iveagh Bequest, Londres), ao fazer-se representar rodeado dos atributos da sua profissão. Na composição do Museu Thyssen-Bornemisza, cuja data de execução pode ser situada por volta de 1640, o artista faz-se representar de preto, com gibão rematado por pele e duas correntes de ouro, sob fundo neutro.

O traje é idêntico ao envergado por Dirk Bouts (1410/1420-1475) e Rogier van der Weyden (c. 1399-1464) em duas gravuras de Hieronymus Cock (c. 1510-1570), editadas em 1572, nas quais encontrou inspiração, e indica, nessa medida, um tributo aos artistas flamengos do século XV.

A constante introdução de variações na indumentária, que transporta o artista no tempo ou o traz de volta ao seu tempo, ou as duas coisas em simultâneo, serviu igualmente ao pintor de meio para alicerçar o seu lugar no seio de uma longa tradição artística, na qual se igualou, ou mesmo rivalizou, com grandes mestres, como parece ser o caso do Autorretrato (1640, The National Gallery, Londres), em trompe l’oeil, na qual retoma a pose de Albrecht Dürer em Autorretrato (1498, Museu do Prado, Madrid).

Especialistas da obra de Rembrandt identificaram nesta tipologia de representação, em que vários níveis de informação contribuem para o resultado final da composição, a conjugação de dois fatores determinantes: por um lado, a representação do uomo famoso, por outro, a existência de uma obra autografada da raison d’être da sua notoriedade, uma técnica pictórica de exceção.

Este corpo impressionante de composições, suportado por uma convincente ilusão de realidade, que nos coloca perante uma característica particularmente estimulante do génio do artista – Rembrandt fecit Rembrandt – suscita, assim, a convicção de que a função (ou as funções) do autorretrato na obra do pintor, que ora insinua uma interpretação possível ora traduz uma realidade tangível, converge, em suma, para a constituição de uma iconografia sem paralelo na pintura ocidental, que não cessa, e talvez seja esse o desafio supremo da arte, de nos questionar e surpreender.

Luísa Sampaio
Conservadora de pintura, Museu Calouste Gulbenkian

 

Fonte:Fundação Calouste Gulbenkian

 

 

 

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