O trilho na montanha – Sa Pa

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Uma manhã nem solarenga, nem chuvosa. As condições estão, isso sim, perfeitas. Podemos pôr pés ao caminho, já que foi por essa mesma razão que viemos até Sa Pa. Caminhar por entre as montanhas e arrozais perdidos pelo norte do Vietname. A temperatura não podia estar melhor, temos calçado adequado, uns calções e uma t-shirt que nos protege o peito dos raios de sol que espreitam por entre as nuvens. Colocamos o canivete no bolso – não que se lhe vá dar uso algum, mas sentimo-nos mais preparados ainda assim – e partimos. Assim começa outra alegre e despreocupada caminhada pela montanha.

Desde cá de baixo ainda parece faltar muito para chegar ao destino. Não há outra solução senão começar. Lançamo-nos ao caminho e evitamos olhar o cume da montanha. Para além de uma desmotivação avassaladora sabemos que o dia seguinte nos poderá brindar com a desagradável visita de um malfadado torcicolo.

Sem que dêmos bem por isso, e sem que o consigamos explicar, damos por nós a avançar a um bom ritmo. De forma descomprometida, sem preocupações, sem saber que horas são e sem o querer saber, sentimos a brisa fresca bater-nos de frente na cara. A esta altura já nos libertamos das amarras da civilização, somos um só com a natureza. Saltamos por cima de riachos e às vezes molhamos as botas de caminhada. Não tem mal, elas vão secar durante todo o caminho que ainda temos por percorrer.

De forma não apressada, ainda que ritmados, continuamos. Saltamos de pedra em pedra, desviamo-nos dos ramos das árvores que barram o caminho, escorregamos ao de leve em areias que se banham ao sol em cima dos pedregulhos. Subimos e descemos socalcos perfeitamente desenhados na montanha em tempos usados para plantar o arroz de quem por aqui já passou e dele viveu.

Sentimos uma pinga de suor arrastar-se vagarosamente pela testa e percebemos que devemos estar a caminhar há algum tempo. Só então reparamos que temos as costas encharcadas, ainda que tudo isso faça parte da aventura que nos propusemos viver. Decidimos enfrentar os desafios da montanha, só porque sim. Sem qualquer outra justificação, apenas e tão só porque o podemos e queremos fazer.

Voltamos a nós e o cume da montanha já não parece tão distante. Estamos quase lá. O verde já se apoderou de nós e não conseguimos distinguir nenhuma outra cor porque nada mais vemos senão a vegetação que nos rodeia. Avistamos um pequeno arbusto, aproximamo-nos e percebemos que está repleto de amoras. Como que hesitando pedir licença à mãe natureza, sorrateiramente surripiamos alguns dos frutos que aí se penduram, os quais na verdade só aguardavam ser encontrados por nós. A doçura das amoras enche-nos as papilas com um sabor que, embora familiar, nos era até então desconhecido. Nunca comemos amoras como estas.

Estamos cansados, está na hora de repousar. Avistamos um pedregulho que poderia ser uma boa opção, mas aquela enorme árvore centenária é ainda mais apetecível. De costas voltadas para o tronco sentamo-nos no chão e bebemos a água do cantil reabastecido no riacho por que passamos não há muito tempo. Fechamos os olhos, desligamo-nos do mundo e voltamos a abri-los passados nem uns segundos. Que erro! De repente sentimo-nos ensonados e a vontade de retomar a caminhada custa fazer-se ouvir. Não o devíamos ter feito. Ainda assim, destemidos, levantamo-nos rumo ao objetivo. Temos de lá chegar.

Rodeados do silêncio da montanha apenas perturbado pelos sons dos pássaros que alegremente nos cumprimentam e encorajam a continuar, observamos tudo o que nos rodeia. As plantas por que passamos têm nomes desconhecidos, os animais por aí perdidos falam línguas que nunca antes soubemos sequer existir. Perdemo-nos em pensamentos dispersos.

E eis que não podemos avançar mais. Olhamos para cima e já nada vemos. Só o sol forte do meio-dia que nem nos apercebemos sequer estar por aí enquanto cantarolávamos as músicas da nossa infância. Só há nuvens, só há céu, já não há cume. Chegamos ao topo da montanha. Afinal não custou assim tanto, pois não? As nossas pernas, indignadas, relembram-nos do contrário.

Invade-nos uma sensação que não esperávamos sentir. Um misto de sentimentos e emoções apodera-se de nós. Por um lado a conquista que não esperávamos alcançar de forma tão repentina aquece-nos o já acalorado coração. Mas ao mesmo tempo há algo mais. Sentimos um pequeno arrependimento apoderar-se de nós. Porque é que subimos tão depressa? Porque não prolongar a beleza de cada segundo que aquele trilho na montanha tem para nos oferecer?

Não importa pensar mais nisso. Temos de descer, há que voltar à realidade que lá em baixo nos aguarda. Inspiramos o ar fresco da montanha, sorrimos e voltamos ao trilho. Só que agora vamos em sentido contrário. Que sortudos somos, em poder repetir tudo isto uma outra vez.

Por João Barros

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