O regresso

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O Portugal dos brasileiros

Quando meu pai Manuel, então com púberes 13 anos, deixou as montanhas verdes e bucólicas de Cova de Lua – uma aldeia quase perdida à borda extrema de Trás-os-Montes -, ele se somaria a uma legião de autoexilados. Gente que se evadia de um Portugal em transe. Não que a vida naquele rincão português tivesse sido algum dia melhor. A existência ali sempre fora de escassez e resignação diante da pobreza endêmica.  Mas cresciam, ao final dos anos 1950, os casos de emigrantes prósperos, que haviam se aventurado em outros países da Europa, nas Américas e nas colônias africanas. Para acentuar essa impressão, esses novos bem-situados faziam questão de ostentar seu sucesso no estrangeiro quando voltavam à aldeia natal nos meses de férias. Diferente de outros tempos, esses emigrantes davam testemunho de uma outra vida possível, longe da terra de desesperançados em que Portugal havia se tornado sob o regime salazarista.

Agora, não eram os donos do mundo que, a bordo de suas naus e caravelas, conquistavam territórios e riquezas nos quatro cantos do mundo. Não eram mais os portugueses de Camões. Os patrícios do Pós-guerra que tentavam sua sorte distantes da terra materna eram os despossuídos, os depauperados por conta do delírio de grandeza que obsediava o Estado Novo, que, por crer na necessidade de manter o império indissoluto, sacrificava o destino nacional.

Meu pai seguramente nada sabia dessas questões de poder. Sentia, no entanto, que a vida na aldeia era cruel e inclemente para os sonhos de um jovem. Alguns se convenciam de que nada mais poderiam esperar da vida, irremediavelmente inóspita e rude. E ficavam. Outros rebelavam-se ante o fatídico e buscavam além da fronteira um chumaço de esperança.

Cinquenta anos depois, são brasileiros que duvidam – uma vez mais – da capacidade de seu próprio país de gerar oportunidades de uma vida digna e enxergam no exterior uma possibilidade redentora. No mapa dos insatisfeitos, Portugal volta a ser um destino preferido. É verdade que não é o primeiro surto migratório. Brasileiros já foram 119.363 em terras lusitanas em 2010, o recorde histórico. A ainda recente crise portuguesa, na contramão do ciclo virtuoso da economia brasileira, havia feito muitos retornarem ao Brasil, que despontava finalmente como uma terra de promessas mais tangíveis. Era o gigante que se erguia e se mostrava mais generoso com seus filhos. Os últimos três anos, entretanto, foram marcados pelo furacão político que alijou do poder a primeira presidente brasileira e também pela derrocada econômica que expandiu a massa de desempregados – 13,7 milhões (IBGE) -, resfriou a atividade industrial e devolveu milhões ao império da indigência. São 24,8 milhões de brasileiros vivendo com renda inferior a um quarto do salário mínimo por mês, o equivalente a cerca de 60 dólares. A crise brasileira em curso insuflou uma nova onda de êxodo. Hoje, em Portugal, são 85 mil brasileiros em situação regular – a maior comunidade estrangeira no País, representando 20,3% dos 421.711 imigrantes. O número é seguramente maior. Nessa conta, não aparecem, por exemplo, os italianos que vivem em Portugal, dos quais 17% são nacionais do Brasil, onde a comunidade de descendentes italianos com dupla cidadania é bastante expressiva, especialmente nos estados do Sul.

Um novo perfil

Aos olhos brasileiros e do mundo, Portugal vem se tornando um oásis. Celebridades daqui vivem entre os dois países. Thiago Lacerda, Luana Piovani e Pedro Cardozo são três expoentes desse novo perfil de brasileiros, rendidos às excelentes condições de vida que Portugal oferece aos seus residentes. É claro que os portugueses poderão apontar um sem-número de problemas domésticos. Mas, ao comparar realidades, os brasileiros que cruzaram o Atlântico não têm dúvidas dos ganhos.
Se o principal motivo para deixar o país sempre foi a busca pela prosperidade, já é possível perceber, entretanto, um novo perfil de imigrantes brasileiros. Ao lado de uma maioria que vai tentar a sorte para juntar economias, há uma classe de brasileiros que faz as malas atraída por algo que – no Brasil de hoje – nem o dinheiro pode comprar: a qualidade de vida. A escalada da violência, que já é um problema sensível em pequenas cidades também, tem gerado uma crescente sensação de insegurança. Esse mal-estar acaba por fecundar o desejo de partida. O idioma comum, o menor custo de vida e a política de receptividade portuguesa aos que podem investir abrem portas para o brasileiro que, apesar da natural ligação com a terra-mãe, deseja, acima de tudo, poder usufruir os recursos que amealhou sem ter de viver sob o domínio do medo.

Eu mesmo já fiz essa travessia. Mas era outro tempo. 1983. Meu pai havia decidido voltar à aldeia natal depois de 20 anos. Adolescente, testemunhei a eficiente rede de proteção social, a qualidade das escolas públicas e o baixo custo de vida. Porém, a vida campesina daquela época era um recuo no tempo. O Portugal do meu cotidiano era obsoleto. A celebrada malha viária de hoje não existia. Nem sei se o túnel do Marão era sequer cogitado. Lembro que a viagem entre Lisboa e Bragança – que hoje se faz em cinco horas – custou-nos o dia inteiro, serpenteando de ônibus por uma infinidade de montes. Na aldeia, as promessas de futuro para os jovens eram estreitas: entre a carreira militar e a migração para a Espanha, França ou Alemanha. Diante da nebulosa de incertezas, acabamos optando por voltar ao Brasil. Não esperamos cumprir-se Portugal.

Hoje, meio brasileiro meio português, a ideia de retornar corteja minhas intenções. O Brasil está afundado numa atmosfera de pessimismo que desafia os homens de fé, seja pelo contexto adverso e pela falência ética, seja pelas perspectivas sombrias e perigosas que a frustração coletiva é capaz de engendrar. Durante os anos de ditadura militar (1964-85), o regime emparedava os críticos com o mote cínico “Ame-o ou deixe-o”, sugerindo que os incomodados mudassem de país em vez de questionarem a legitimidade do governo. A frase que era provocação é agora um dilema.  Num país aturdido por tantas mazelas – que tanto ofuscam suas maravilhas -, é amá-lo ou deixá-lo. É permanecer e mudar, crente na redenção nacional, ou ir embora, como esses brasileiros emigrantes, atrás de outro país que já esteja pronto para ser amado.

 

Por: Luiz Garcia

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