Durante alguns anos trabalhei na região do mediterrâneo e aproveitei os intervalos para ouvir, tentar perceber e gozar os sons daquele mar. Já teve tantos nomes, já foi encruzilhada de tantas sonoridades! Acabei até por o adotar, chamar-lhe o Meu Mar e escrever um livro sobre a musicalidade que por ali nasceu ou desaguou. Dei ao livro o nome de Mar das Guitarras, porque eram as guitarras, com formas diferentes, que eu ouvia em todos os portos.
Recordo-me que um dia, ao ver um canal de televisão francês, reparei que se falava do nosso fado, das vozes do nosso fado e do seu parentesco com outros cantos mediterrânicos. Fixei uma das ideias que me pareceu curiosa e era mais ou menos isto:
– Há nessas vozes que furam o silêncio da noite uma espiritualidade que faz lembrar o chamado muezim, aquele que tem a função de anunciar, lá do alto dos minaretes das mesquitas, o momento das cinco rezas a Alá…
Lembrei-me logo da Amália, mas também da Rua do Capelão na Mouraria, que tem esse nome como homenagem ao último muezim do bairro e que se chamava Mafamude Láparo. A memória da Amália veio pela espiritualidade do seu canto, a mesma de que eles falavam naquele programa de televisão. O que tinha a Amália de árabe, que mesmo sem citarem o seu nome era dela que estavam a falar? Desprendeu-se então de mim uma corrente de coincidências significativas, que me fez ver a Amália naquela hora e naquele país de minaretes!
Recordei que a cantora que ela mais admirava era uma egípcia chamada Oum Kalsoum. E quem é esta mulher? Era uma das mais famosas cantoras do mundo árabe no Séc. XX e conhecida como a Estrela do Oriente. Tal como Amália, as coincidências começam na confusão das datas de nascimento, porque na morte são exatas, ambas morreram célebres e com honras de estado, uma em 1975 e a outra em 1999. Vêm de famílias pobres, memórias prodigiosas, a egípcia chegou a memorizar o Alcorão que o pai lhe ensinou, ele que também chamava os crentes para a oração. Tiveram carreiras que deram grandes saltos no encontro e cumplicidade com compositores, poetas e músicos que lhes espreitaram as almas. Nos amores encantaram príncipes e milionários. O que as fazia diferentes de todas as outras cantoras contemporâneas era a emoção e o dramatismo das suas vozes. Apesar de mortas continuam vivas na memória dos seus povos. Uma usava xaile e a outra um lenço na mão. Mas era só pela afinidade das suas vidas que Amália tanto admirava a egípcia?
Não! Era aquela sonoridade árabe! Amália sempre disse que gostava de ter sido árabe, que era da música que mais gostava, mais ainda que da portuguesa ou da espanhola. Um dia até lhe disseram que ela era tão portuguesa, que mais parecia árabe. Amália gostava de Oum Kalsoum pelos melismas da sua voz, uma técnica muito usada nas músicas das culturas antigas. Serviam para criar estados hipnóticos, praticados sobretudo em rituais místicos de iniciação. Eram também restos da música hindu, árabe e presentes ainda hoje no Canto Gregoriano e Bizantino. Os mesmos que estão também presentes no flamenco.
Amália sabia usar bem a sua voz, ou era a sua voz que se usava dela? Naqueles melismas que aprendeu com a egípcia, a sua voz não vinha da garganta, o grito vinha-lhe das entranhas. É verdade, há qualquer coisa de hipnótico, religioso e espiritual no canto de Amália. Ricardo Ribeiro, outro grande mestre do fado chama a estas variações e artes da voz de voltinhas, floreados, rodriguinhos. São arabescos que hoje todos os fadistas usam.
Os arabescos da Amália, como diz o Ricardo, podem ter sido aprendidos nos cantares da mãe, tias e avós que eram da Beira Baixa. Esses cantos melismáticos terão ficado dos árabes que por lá andaram e depois misturaram-se com os judaicos e cristãos. Essas são também algumas das raízes do flamenco. Por coincidência, mais uma vez, essas Terras da Idanha de onde lhe soprava essa música eram conhecidas por Egitânia. Um nome que vinha de uma cidade ali fundada pelos romanos no Séc. I a.C. e depois tomada pelos árabes no Séc. VIII.
Esta influência do canto da mãe é curiosa, porque a ouvi de muita gente e até se aplica a mim próprio. Paco de Lucia trazia os sons da guitarra do pai e era pela música que ele comunicava com ele; o grande Manuel de Falla, o compositor, pai e militante do renascimento do flamenco ouvia a mãe e uma criada que lhe cantavam o flamenco antigo; o nosso Ricardo Ribeiro lembra a voz bonita da mãe e de uma vizinha amante do fado que o ajudou a criar.
Há hoje uma teoria, mais que teoria, por- que já comprovada com algumas experiências, que diz que o feto dentro da mãe ouve sons a partir das vinte semanas. O sistema auditivo começa a funcionar em pleno nessa idade. Ouve-se então o bater do coração da mãe, os sons do dia-a-dia, as músicas a que se fica exposto e a uma em particular. Essa pode ficar para o resto da vida! O que Amália ouviu na barriga da mãe foi esse canto, numa voz que ela dizia ser de pérola. Eram os sons da Egitânia, essa mistura árabe, judaica e cristã. Depois separou-se da mãe e foi viver com a avó aos catorze meses. A primeira saudade aconteceu bem cedo!
No seu fado falado e confidente, Amália dizia que trazia dentro dela a angústia, a solidão e o desencanto do próprio fado. “Sou fatalista e de tal maneira, que ninguém pode fazer nada por mim”. Era o seu Maktub, que na nossa língua quer dizer: Está escrito! Era como se o próprio fado encarnasse nela pela via de todos esses sentires. A solidão era a sua solidão, a sua saudade era o Tarab árabe, uma saudade que, como dizia o Eduardo Lourenço era inventada e outras vezes uma saudade do futuro. Era a sua sujeição a um deus maior que se chamava Fado, como se uma das três moiras do Fado Grego lhe tivesse tecido o fio da vida e ela não se pudesse desprender. Porque esse Grego Fado é uma força cósmica superior a todos os outros deuses e a todas as outras vontades.
Mas Amália tem razão, porque é irresistível esta atração pela música árabe, também a senti e tem qualquer coisa de mágico, religioso e profundo. Penso que foi isto que ficou agarrado ao nosso fado e Amália fez-se sacerdotisa desse ritual de magia. São sonoridades que segundo Garcia Lorca tem alguns elementos que vieram da Índia, talvez trazidos pelos ciganos. É o Cante Jondo, primitivo, profundo e com mais força emocional. Para Lorca era um cante trágico, triste, um hino à noite. É isso mesmo que diz a mitologia grega, o Fado para os gregos é filho da Noite e esta era uma divindade gerada no caos (Terra).
Essa tal força que nos atrai é tão forte que Luísa Amaro, a viúva de Carlos Paredes, quando recomeçou a seu trabalho musical foi à procura dessa influência árabe que estava esquecida e era preciso religar. Andou pelas terras da Beira Baixa à procura do choro árabe e quando se aproximou dele teve medo e fugiu daquela sensibilidade arrepiante que a atraía. Talvez fosse o alaúde a chamá-la?
Um outro lado curioso da Amália é a relação com a poesia. Deixou-nos belos poemas como Estranha forma de vida, Lágrima… Grito! Ela aprendeu bem as diferenças entre música/poesia, afinal duas linguagens que fizeram o caminho juntas. Apesar de companheiras de estrada há uma tensão antiga entre elas, uma afinidade e uma diferença. São ambas artes do tempo, mas com Amália não sabemos distinguir ou ficam-nos dúvidas sobre se a música é o poema ou são as guitarras que nos contam a história. Foi quando Amália procurou a harmonia dos grandes poetas, a começar por Camões! Neles vai buscar a sensualidade dos sons e nas palavras o apelo de todos os sentidos. Nessa encruzilhada soltam-se aqueles melismas hipnóticos da voz. É verdade que o canto da Amália é como uma catarse purificadora, até para as lágrimas teimosas quando não querem cair.
Tinha razão Nietzsche ao dizer que a música era a origem de todas as artes; tinha razão Wagner quando se maravilhava com a clareza mediterrânica de Cármen; tinha razão Stravinsky quando trouxe a música
para a oficina e quis ser artesão!
Amália trouxe tudo isso para a sua arte do tempo sem tempo, ou então era ela que vinha do futuro:
– Música, mãe de todas as artes, dizia Nietzsche! Primeiro Amália fez isso com a voz e deu tons e sons à poesia, até que ambas se desfizessem na mesma música. Depois foi a representação dramática e trágica dos sentimentos e das emoções com música. Tal como Falla e Lorca no flamenco, ela fez renascer o fado e trouxe-o para um tempo novo; tal como Gardel e Piazzolla que carregaram o tango dos pés para a garganta e daí para o ouvido. Ela pegou no fado e fez da saudade música e um círculo maior das artes onde passou a caber tudo;
– Ela foi buscar o fado profundo à sua própria profundidade e tudo ficou com mais sentido. Ao navegar na transparência das ondas sonoras e suaves do mediterrâneo, ela deu ao fado essa clareza que Wagner viu na Cármen;
– Como Stravinsky, ela fez do fado uma oficina medieval onde começaram a nascer aprendizes na voz e nas guitarras e que hoje estão a crescer como se fossem árvores… Estava escrito esse renascimento… O Maktub da Amália!
Por Jorge Marques
Ilustração por Luís Teles