O escaravelho comunicativo

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Diz-se que primeiro veículo com rodas data da metade do quarto milénio a.C., mas muito antes disso já o Scarabaeinae havia descoberto a mobilidade enquanto aglomerava pacientemente partes de esterco até formar uma esfera quase perfeita que transportava velozmente para o seu depósito de reserva de comida. Chamam-lhe o Escaravelho do Esterco.

A palavra comunicação é tão ampla quanto me pareceu no momento em que me pediram para escrever este artigo.

Informação, participação, aviso, transmissão, notícia, passagem, ligação, convivência, são alguns dos sinónimos que me aparecem no dicionário Priberam após uma “Googlagem” muito rápida. No mesmo dicionário em Comunicação Social aparece: “um conjunto de órgãos de difusão de notícias (imprensa, rádio, televisão)” ou “prática ou campo de estudo que se debruça sobre a informação, a sua transmissão, captação e impacto social”.

Terá o ser humano tido tempo para perceber a rápida e silenciosa transição da comunicação efémera para comunicação eterna? Será que já encaixámos que uma palavra escrita do passado se esfumou no futuro e que uma palavra escrita no presente se torna perpétua de forma independente da intenção de quem a profere? E se por acaso já o percebemos, por que raio somos cada vez mais parcos na reflexão com que escrevemos e mais abundantes na espontaneidade irrefletida das nossas manifestações?

É minha certeza que não entendemos nada do que o novo mundo de “comunicação” nos ofereceu e oferece. Não entendemos que o Share Now é o Copy Paste do passado e que as palavras partilhadas fazem dessas nossas próprias palavras.

O Ser humano perdeu a capacidade de comunicar, seja lá o que isso quer dizer, e com isso perderá a capacidade de socializar. Estamos a destruir o nosso melhor ativo e o que faz de nós uma sociedade inteligente, o ativo que nos permite transmitir emoções, visões, experiências, vivências e convivências, que nos permite também, sendo recetor, sentir exactamente o mesmo que recebemos da narrativa e termos a oportunidade de experimentar e viver o que o outro viveu através das suas descrições.

Hoje um postal de Natal é um standard descarregado da internet, uma mensagem de aniversário é um seco Parabéns na página social, uma mensagem de pêsames é um like, uma mensagem de melhoras é um chavão que veio de algures e uma mensagem de coragem é um copy paste ou, aliás, um share, de uma frase feita de um qualquer pensador/escritor, do tempo em que se pensava… e escrevia.

Temos mil e uma ferramentas para comunicar, mas não perdemos um minuto para endereçar palavras dedicadas e exclusivas para aquela pessoa. Em vez disso, procuramos no meio do mato chamado internet, aquilo que alguém já proferiu, seja isso uma flor, seja isso um pedaço de esterco.

Televisão 3D, Velocidades 5G, tempo real, streaming para quê se não for para comunicar e, por definição, para nos aproximarmos dos outros seja lá para partilharmos da sua dor, do seu prazer, da sua felicidade ou do que quer que seja. Estamos na realidade a destruir a capacidade de comunicar que construímos, beneficiando a rapidez em ligar da reflexão, a banalidade em vez da exclusividade.

O mundo tem que “Parar quando tens que continuar” – um livro básico, mas que todos deviam ler uma vez na vida – porque no sítio para onde caminhamos não há mundo nosso, apenas cliques no mundo dos outros, na vivência dos outros de que nos queremos apoderar.

Os escaravelhos têm uma importância ecológica enorme. São eles que “limpam” a natureza das fezes e carcaças, funcionando como espécies dispersoras e recicladoras de nutrientes nos ecossistemas onde proliferam. Costuma-se dizer que onde há mosca, há esterco pelo que onde há escaravelhos, em princípio não haverá moscas.

Na mitologia egípcia o escaravelho sagrado está relacionado com o deus Khepra, o deus responsável pelo movimento do sol no horizonte tal como escaravelho movimentava a sua bola de esterco no terreno.

A comunicação social sempre teve um papel fundamental na sociedade. Por ela e pela sua liberdade e independência arriscava-se a vida! Veja-se o que se passou nos tais regimes anti-democráticos. Foi a comunicação social que, mais bem do que mal, colocou o mundo no patamar de integração em que estamos: mais igual, mais justo, mais próspero! Onde estão esses indivíduos que se dispunham a dar a vida por todos? Onde estão aqueles que juraram comunicar livremente e francamente?

Da mesma forma que não existiria democracia sem o Gutenberg, não existirá nunca democracia sem jornalistas sérios, sinceros e isentos. Caminhamos para um mundo de loucos em que a comunicação não é informação, em que os julgamentos se fazem na praça e em que ganha o que melhor estrategicamente consiga comunicar, ainda que tal seja desinformar.

A comunicação é hoje mais Marketing Digital do que informação, e não só os “comunicadores profissionais” se deixaram corromper pelo poder das redes sociais, como nós todos nos tornámos o veículo dessa mesma corrupção. Talvez branqueamento de comunicação devesse ser equiparado a branqueamento de capitais, talvez deva ser tão punido o que acusa sem prova como o acusado pela prova, talvez um jornalista devesse ter o dever de informar, mas também de filtrar.

Uma opinião não é um facto, mas talvez muitos não devessem ter tempo de antena para manifestar opiniões que teimam em querer fazer passar como factos.

As televisões desesperadas por audiência dão audiência de milhões a quem não tem ponta de conhecimento do que fala. Será isto a nova comunicação? Ganhar tempo de antena em horários em que o comentário faz parecer uma certeza? Pode alguém com responsabilidades políticas ser comentador? Pode alguém comentar algo para o qual não está qualificado? Vale mais o dom da palavra do que a palavra em si?

E este texto vai então em forma de apelo aos que profissionalmente ou amadoramente comunicam diariamente para que não transformem estilhaços de esterco em bolas de esterco que levam alegremente para a despensa para comer mais tarde ou para meter ovos de mais escaravelhos que virão.

O mundo não precisa de mais esterco até porque mais esterco só polui. O mundo precisa de comunicação e informação decente capaz de permitir a um, entender o outro, a um tolerar o outro, a um, aproximar-se do outro não pela palavra, mas pela verdade dos factos. Só a verdade factual permite um julgamento real.

As redes sociais não terão que acabar, longe disso. As redes sociais têm que deixar de ser as auto-estradas de esterco e passar a ser um veículo real de proximidade com verdade. Cada partilha de uma mentira faz de nós mentirosos e coniventes com quem a profere.

Acabe-se com a preguiça de escrever, de ter opinião e de comer a opinião dos outros como os escaravelhos comem a bosta que o elefante deixou por ali.

Quem deve começar este processo? TODOS! A classe política que é obrigada ao respeito entre si e na forma como comunica, os jornalistas cuja missão é informar e não opinar, o cidadão que se deve abster de alimentar as campanhas de marketing digital que confundem com comunicação… Todos temos que fazer algo e se calhar, voltar às conversas de café onde pelo menos as opiniões eram legitimadas pela presença e pelo confronto de ideias.

Partilhar algo que não filtramos é como abrir a boca e dizer 3 asneiras seguidas começadas por C. Reagir a algo que nem lemos é como levar um bolo rei para um velório. Escrever uma notícia imprecisa é como mandar F todos os que a leram. Falar de outros sem conhecimento de causa é como julgar a Madre Teresa pelo que comeu, que podia ter matado a fome a outro. Tolerar a informação falsa e dar-lhe tolerância é como meter uma granada em cada bolso e tentar andar devagar.

É hora não só de parar de colocar lixo no mega contentor a que chamamos de internet, mas também de começar a retirá-lo, sob pena de termos que construir uma nova e transformar a actual num aterro.

As alterações climáticas são um problema que vem muitos pontos abaixo do problema da comunicação. Se tivesse que dar nome ao ano 2020, chamar-lhe-ia “Ano da Comunicação”. Porque ela é urgente e porque só com ela podemos esperar um futuro realmente melhor.

É também por tudo isto que não recuso um convite da Revista Bica. Precisamos destes projectos de comunicação diferentes mas genuínos, onde não partilhamos o que recebemos mas sim criamos e informamos com o melhor que somos e a realidade do que representamos!

Obrigado Bica!

Por Bernardo Mota Veiga

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