Oito da manhã. Acabados de cruzar o controlo de segurança, calçamos os sapatos e apertamos o cinto que educadamente nos pediram para retirar no controlo de metais. Este é o único sítio, para além da praia ou do rio, em que é aceitável despirmo-nos em público sem ser alvo de reprimendas por parte dos olhares mais conservadores que por lá estejam a passar.
Olhamos em frente e deparamo-nos com um mundo de opostos, um mundo de contrastes. Contra as grandes paredes de vidro que nos permitem ver os aviões ao fundo, lado a lado, estão dois homens. Um deles, dos seus quarenta anos, fato e gravata, acaba de se sentar de forma atrapalhada no banco livre mais próximo e liga de imediato o computador. Coloca os headphones e parece estar na reunião mais importante da sua vida. Sentado à sua frente está um outro homem com a mesma idade. Usa calções pelo joelho, uma camisa de manga curta com padrão às flores e birkenstock que parecem ser a estrear no próprio dia. Tem também os headphones nos ouvidos, mas alegre e despreocupadamente abana a cabeça. Entre ambos a distância é curta, mas na verdade não podiam estar mais longe um do outro.
Voltamo-nos para a esquerda. Enquanto avistamos um homem correr apressadamente em resposta ao último anúncio do sistema sonoro instalado nas altas paredes brancas do aeroporto, uma mulher deita-se desconfortavelmente num banco, ocupando três lugares, pés em cima de uma mala, aguardando pacientemente a sua vez de embarcar. Um homem de meia-idade olha por cima do ombro, lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto em busca das caras entretanto desaparecidas da família que, durante três meses, deixará para trás para ir lutar por algo melhor. Ao seu lado, uma estudante não consegue esconder o sorriso de orelha a orelha quando pensa que, dentro de meras horas, verá os pais e o irmão mais novo que faz já quatro meses não consegue visitar por conta dos exames da universidade que tanto a obrigaram a estudar.
Viramo-nos agora para a direita. Tudo parece estar ainda mais de pernas para o ar. Nas mesas reservadas de uma cadeia de hambúrgueres conhecida um grupo de amigos não parece fazer caso da hora vespertina e devora grandes sanduiches regadas com ketchup e maionese, acompanhadas de um grande copo de litro que parece conter aquilo que se assemelha a uma bebida gaseificada outrora utilizada para desentupir canos. Não estivessem eles num lugar como este e a sociedade, como já nos tem vindo a habituar, julgá-los-ia sem qualquer dó nem piedade por tais hediondos atos. Mas não, no aeroporto não. Aqui tudo parece ser admitido com elevadas doses de naturalidade.
Que lugar estranho este, em que os carros servem não para carregar pessoas, mas antes malas. Em que, qual Aladino, tapetes mágicos tanto nos transportam ao longo de intermináveis corredores como fazem também rodopiar malas num ciclo interminável que apenas é interrompido por uma mão que delas se venha a apoderar. Um lugar pouco habitual, em que pessoas com ar apreensivo formam filas em toda a parte sem que ninguém as instrua nesse mesmo sentido. Em que todos arranjamos sempre tempo para estar duas horas antes do momento em que é suposto ali estarmos, quando no dia-a-dia não conseguimos sequer ter dez minutos para nos sentarmos à mesa para almoçar. Um lugar em que atrasos são encarados com um encolher de ombros, acompanhado de um ‘o que se há-de fazer?’, quando no dia anterior se buzinava freneticamente porque o veículo da frente não arrancou de imediato mal o semáforo passou a verde. Sim, este lugar é tão inatural assim que vemos pessoas com almofadas em forma de croquete atadas à volta dos seus pescoços, ali mesmo em público, numa busca incessante pelo conforto que o local não tem para oferecer.
Que lugar estranho este, em que umas coisas levantam e outras aterram, numa perspetiva que, em duas dimensões e com o grau certo de saturação, seria digna de um filme realizado por Wes Anderson. Em que no Inverno o vestuário é dominado por calções e sandálias daqueles que do frio e da chuva pretendem fugir, e no Verão não faltam nunca as camisolas de manga comprida sob o pretexto de que os ares condicionados podem estragar os próximos quinze dias. Um lugar tão estranho em que quem quer fumar tem que o fazer dentro de jaulas construídas para o efeito, e não ao ar livre. Em que a perceção do tempo nos escorrega por entre as mãos, tal qual um sabonete, durante o duche, quando o tentamos controlar sem qualquer probabilidade de sucesso.
Um lugar estranho, disso não parece haver dúvida. Mas ainda assim um lugar em que, não tão estranhamente, já todos experimentamos emoções opostas entre si. Da felicidade de rever um amigo à tristeza de por algum tempo nos afastarmos daqueles de quem mais gostamos. Um entusiasmo característico do início de uma nova aventura que sempre contrasta com a recusa em aceitar o regresso ao trabalho na segunda-feira que está aí a chegar. É um lugar estranho, sim. Mas não interessa. Mesmo que o seja, é um lugar que, se queremos verdadeiramente experienciar, por lá temos forçosamente que passar.
Por João Barros