No encalço do Invisível

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Alguns projectos de investigação nascem naturalmente, senão mesmo fruto de circunstâncias particulares, portanto sem uma consciência clara e pré-estabelecida daquilo em acabam por se tornar, a partir de desenvolvimentos que vão acontecendo ao longo do processo da sua realização. A Viagem ao Invisível, de Maria Rita Pais e Luís Santiago Baptista, foi um projecto que se concretizou através de uma sequência de acontecimentos ao longo dos últimos anos.

O primeiro compreendeu uma viagem já realizada, vencedora do concurso Open Call Comissariado Viagem Pop-Up lançado pela Secção Regional Sul da Ordem dos Arquitectos em Novembro de 2015. O segundo, a exposição no Teatro Thalia realizou-se entre Julho e Setembro de 2018 e teve o apoio da DGArtes nos concursos dos Apoios Pontuais desse ano. Por fim, o livro Viagem ao Invisível: espaço, experiência, representação foi lançado em Abril de 2019, com o apoio da Fundação Serra Henriques e recebe agora o Prémio FAD Pensamento y Crítica 2020.

 

Longe de serem manifestações diferentes de uma mesma ideia, são antes realizações sequenciais de um processo de investigação, em que cada uma dessas fases detém enquadramentos, intenções e estratégias diferenciadas, embora sem nunca perder o seu fio condutor. Não obstante a relativa autonomia de cada um desses eventos, estes implicam, pois, uma leitura de conjunto mais alargada, de assumida complementaridade, permitindo uma compreensão mais profunda e sustentada do projecto no seu todo.

Este ensaio introdutório pretende fazer a leitura interpretativa e crítica de todo o projecto, cruzando uma narrativa sobre os seus pressupostos e desenvolvimentos com uma elaboração teórica sobre os temas de investigação abordados.

 

O itinerário da viagem, realizada entre 10 e 12 de Junho de 2016, percorreu uma série de obras de natureza diversa no centro do país, convocando a invisibilidade nas suas dimensões culturais, sociais, lúdicas, étnicas, religiosas, médicas, militares, industriais e infra-estruturais: Estaleiro Naval da Margueira (1967-2000); Casa Lino Gaspar de João Andersen (1953-55); Centro Comercial da Mouraria de Carlos Duarte e José Lamas (1980-89); Pedreiras de Vila Viçosa; Mosteiro da Cartuxa de Évora de Felipe Terzi e Giovanni Casalli (1587-1598); Minas de São Domingos (1858-1965); Antiga e Nova Aldeia da Luz de João Figueira & Associados (1995-2003); 8ª Bateria do Regimento de Artilharia de Costa (1948-1998); Quinta da Comenda de Raul Lino (1902-1909); Hotel das Arribas de Raul Tojal e Manuel Carvalho (1961); o “Bairro dos Arquitectos” no Rodízio de Keil do Amaral, Adelino Nunes, Raul Tojal e Faria da Costa (1941-1943); Pavilhões do Hospital Termal das Caldas da Rainha de Rodrigo Maria Berquó (1901); Panóptico do Hospital Miguel Bombarda de José Maria Nepomuceno (1892-1896); Panorâmico de Monsanto de Chaves da Costa (1968).
Esta viagem não foi uma simples visita a um conjunto de espaços significativos. Explorámos as relações entre a experiência subjectiva e as suas representações históricas e artísticas: a noite passada no Hotel das Arribas cruzava-se com a projecção do filme The State of Things de Wim Wenders e com uma obra de Ângela Ferreira; a entrada no Panóptico era atravessada pelas cenas finais das Recordações da Casa Amarela de João César Monteiro; a experiência do Panorâmico confrontava-se com excertos do documentário Ruínas de Manuel Mozos; a entrada nos Pavilhões do Hospital Termal era acompanhada pelas crónicas de Ockert Ferreira da passagem dos Boers por Portugal, primeiros habitantes do edifício; a entrada restrita no Mosteiro da Cartuxa preanunciava-se no projecto fotográfico de Daniel Blaufuks; o deambular pelos Estaleiros da Lisnave descobria os grafittis de Vhils no próprio local; a visita à Nova Aldeia da Luz reflectia-se no filme de Catarina Mourão da submersão da antiga; a descida às Pedreiras dos Pardais era reforçada pelas fotografias de Edward Burtynsky; a contemplação da Quinta da Comenda era assombrada pela referência à visita de Jacqueline Kennedy; a intromissão na Casa Lino Gaspar complementava-se com a publicação na revista Arquitectura em 1957; etc.

A segunda fase do projecto compreendeu uma exposição e respectivo catálogo. Os convites a artistas e investigadores a fazerem o itinerário connosco pressupunha já que o objectivo não estava meramente na visita, mas na produção de trabalho artístico e crítico a partir da experiência da viagem. Participam os artistas Isabel Barbas, Nuno Cera, Ricardo Castro, Ricardo Jacinto e Tatiana Macedo e os investigadores Álvaro Domingues, Inês Moreira, Spela Hudnik, Eliana Sousa Santos, Susana Oliveira e Susana Ventura. Estes últimos, publicaram os seus textos no livro que veio mais tarde.
A intenção do projecto passa pelo cruzamento da arquitectura, das artes e das ciências sociais e humanas na experiência e representação do espaço. A abordagem da invisibilidade realiza-se a partir da recolha de material documental, da convocação de obras de arte existentes, da criação de novas pelos artistas e de reflexão original pelos investigadores.
Por fim, a inclusão de um último caso de estudo, o Teatro Thalia (2008-2012) de Gonçalo Byrne e Barbas Lopes, onde se realizou a exposição, foi um manifesto neste projecto, cuja recente reabilitação trouxe à visibilidade uma obra que no seu uso passado e na sua posterior condição de ruína devoluta foi revelando diferentes dimensões de invisibilidade.

 

Na última fase, o livro Viagem ao Invisível: espaço experiência, representação realizamos uma enorme reflexão teórica em torno da ideia de invisibilidade, dando ênfase a algumas questões que considerámos determinantes:

– Viagem e Arquitectura – O tema da viagem em arquitectura tem sido nos últimos anos alvo de diversas publicações, quer internacionais, quer nacionais, que procuram tanto investigar a sua genealogia histórica como problematizar a sua condição contemporânea.

– Espaço e Invisibilidade – A Viagem ao Invisível propôs-se investigar a questão da invisibilidade em arquitectura, que parece ser um paradoxo, tendo em conta que o seu papel fundamental é tornar visíveis as instituições e valores das sociedades, bem como as vontades e necessidades humanas, dando-lhes presença e permanência na cidade e no território. Foi esta natureza paradoxal e esta dimensão oculta da arquitectura que nos interessou investigar através da ideia de invisibilidade.

– Experiência e Historicidade – O que entendemos por experiência em arquitectura? Quais as suas concepções teóricas e estéticas? Que dimensões se manifestam na experiência espacial?

– Representação e Arquivo – Que relações estabelecemos com o material histórico? Como organizamos a memória de forma a construir sentido? Quais as suas implicações políticas, ideológicas, sociais, culturais e estéticas? A proposta curatorial para a exposição apropriou o conceito de arquivo, que vem ganhando relevância na investigação nas áreas das ciências sociais e humanas, bem como nas práticas artísticas e arquitectónicas.

 

A Viagem ao Invisível propôs uma aproximação a este invisível através das múltiplas interpretações do espaço, a sua experiência directa na viagem relacionada com as múltiplas intrepretações que se abrem através do cruzamento de leituras documentais e artísticas, reais ou ficcionais. Neste cruzamento, consideramos que estes espaços se tornam um pouco mais visíveis, mais reais.

 

O livro Viagem ao Invisível é assumidamente um livro de arquitectura pensado por arquitectos, mas que se dirige a um público alargado. Por outro lado, este livro não pretende ser especificamente um catálogo, na sua dependência em relação à exposição, embora tenha algumas características deste, ao assumir a tarefa de registo de um processo de investigação e de arquivo de material iconográfico. Se existe naturalmente uma vinculação às fases anteriores da viagem e da exposição, sendo o livro na verdade construído com o material anteriormente recolhido, este livro não deixa de assumir alguma autonomia, expandindo os seus conteúdos, seja através da inclusão de material novo entretanto descoberto, seja através da publicação de uma série de ensaios críticos originais, por investigadores não participantes nas fases anteriores do projecto.

 

 

Maria Rita Pais

Luís Santiago Baptista

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