Não havia Necessidade(s)

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Concessão vrs. petição. E o projecto?

Lembro-me bem de quando visitei a pela primeira vez os jardins da Necessidades, em resposta ao desafio (da minha orientadora, Professora Cristina Castel-Branco) de o ter como tema para o meu trabalho de fim de curso em Arquitectura Paisagista. Era na altura uma joia decadente, pouco visitada, mas com muito do seu património ainda intacto, mantido em parte pela presença da Estação Florestal Nacional, que aqui tinha a sua sede. Foi fascinante conhecer o espaço e, a partir daí, dedicar muito do meu tempo ao seu estudo: no terreno, na Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional ou nos arquivos da Fundação da Casa de Bragança. Depois da saída da Estação Florestal Nacional, a tapada foi entregue ao abandono e a uma profusão de tutelas sobre várias das suas partes (Ministério dos Negócios Estrangeiros, Câmara Municipal de Lisboa (CML), Ministério da Agricultura, Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, Instituto da Defesa Nacional). Um filho com demasiados pais, nenhum deles com muito interesse em o mimar. Anos mais tarde, o ex-Presidente Jorge Sampaio escolheu a Casa do Regalo como seu escritório depois do fim do mandato e a CML foi aos poucos assumindo a gestão do espaço, melhorando um pouco a zona sul – que foi ganhando visitantes – e tendo, em 2008, assinado um protocolo com o Ministério da Agricultura para assumir a gestão da Tapada.

As Necessidade são o grande jardim real de Lisboa, através do qual de pode contar a história de Portugal desde o século XVIII – quando foi construído pelas mãos de D. João V ao estilo barroco –, passando pela grande intervenção de D. Fernando II e D. Maria II – que nele marcaram as suas ideias liberais –, por D. Carlos – que aqui viveu e foi velado – e por D. Manuel II, que daqui fugiu aquando da implantação da República. Sobre a sua importância histórica, e no eventual desconhecimento da bibliografia existente (ver no final do texto),

bastaria a consulta da ficha do monumento

http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=23154

no site da Direção-Geral do Património Cultural, o este artigo da Bica

https://revistabica.com/lisboa-verde-bica-0-necessidades-um-jardim-esquecido/,

para averiguar da sua importância e confirmar a sua classificação como Zona Especial de Protecção de Imóvel de Interesse Público (Palácio das Necessidades).

As Necessidades são assim, indiscutivelmente, um jardim histórico à luz de qualquer critério que se aplique: histórico, artístico e paisagístico.

Há não muito tempo soube, por um grupo de amigos das Necessidades, do projecto de concessão do espaço a um grupo privado e, depois, de uma petição lançada, a qual, confesso, tive algumas dúvidas em subscrever, por não concordar com alguns dos seus pressupostos. No entanto, depois de analisar os elementos disponíveis sobre o processo de concessão, e dada a importância do que estava em causa, assinei-a convictamente por ser a melhor forma de trazer o assunto para a discussão pública, para a qual este artigo pretende ser mais uma contribuição.

Após o desencadear da petição, surgiu uma resposta do vereador Sá Fernandes, da qual cito: “No final do mês de maio, estará concluído o anteplano de gestão e uso da Tapada das Necessidades, que fará o diagnóstico de todas as patologias e valências e anotará diversas soluções para cada uma, o que permitirá um debate franco e transparente sobre o futuro da Tapada e respetivos usos.”

Analisando o procedimento de concessão e a resposta do vereador Sá Fernandes, permite-se assinalar os seguintes factos: a CML avançou com um processo de concessão de edifícios, inseridos num jardim histórico de cerca de 10 hectares, a uma empresa privada, sem ter um projecto (ou ideia global) para esse jardim, atribuindo usos a esses edifícios que não estão enquadrados num plano para a tapada e não sendo claro quem será responsável pelo dito plano de gestão (pelo plano, pela sua execução e pela gestão).

Os factos apresentados despertam assim as seguintes perplexidades:

Como é possível avançar para uma concessão de edifícios inserido num jardim, sem antes se delinear um plano geral de actuação (nem que seja apenas de gestão). Seria o mesmo que alugarmos uma loja num prédio que não foi construído, nem tem projecto, e que no final se pode entender que não deve, ou pode, ter a dita loja.

Como é possível que se tenha avançado para soluções (de construção e de uso) sem um plano de restauro (integrado num plano de gestão). Ao não falar em restauro, em nenhum documento ou declaração, parece patente que a CML não conhece, ou não quer conhecer, a importância histórica deste jardim, que deveria ser a linha condutora para qualquer intervenção. A CML avançou então para esta concessão como se os edifícios não estivessem integrados num jardim histórico, mas num qualquer terreno baldio.

Como é possível que só depois de aprovada esta concessão, e de surgir a petição, tenha sido anunciado o dito ante-plano de gestão (seja essa figura aquilo que for), que parece claramente ter saído da cartola para acalmar os ânimos.

Como é possível avançar para a suposta dinamização deste espaço sem que o essencial plano de restauro (e de gestão) seja alvo de participação pública, obviamente antes de assumir quaisquer compromissos como o da concessão já efectuada.

Se há em Lisboa jardim capaz de contar a história do barroco à República, com importante passagem no liberalismo é este. Que essa história seja por poucos conhecida, infelizmente é comum em Portugal, que seja a Câmara Municipal a trata-lo como um lugar sem importância, já me parece, no mínimo, obsceno.

Todo o procedimento é assim turvo, aparentemente incompetente e contrário à protecção de um importantíssimo património da cidade de Lisboa. Daí que aplaudo a Petição que circula em defesa das Necessidades, por agregar quem, num acto de cidadania activa, tenta defender este património e pressionar a Câmara Municipal de Lisboa para um desenlace que valorize este belíssimo jardim tão cheio de história.

 

João Albuquerque Carreiras

Arquitecto Paisagista

P.S. Como estamos em ano de eleições, este é um tema sobre o qual todos os candidatos se deveriam pronunciar.

 

Bibliografia do autor sobre o tema:

“Acerca das Necessidades – Bases para o restauro de um jardim histórico”, Relatório de Fim de Curso em Arquitectura Paisagista, Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, 1999

Co-autor em “Necessidades. Jardins e Cerca”, Coord. Cristina Castel-Branco, Livros Horizonte, Lisboa, 2001

“Jardins do Liberalismo – Portugal e Brasil”, Tese de Mestrado em Arquitectura Paisagista, Instituto Superior de Agronomia, Lisboa, 2015

“Necessidades, um jardim esquecido” in Revista Bica, nº 0, Outubro de 2016,

https://revistabica.com/lisboa-verde-bica-0-necessidades-um-jardim-esquecido/

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