Museus e futuro: algumas interrogações em desconfinamento

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O futuro é quase impossível. As narrativas futuristas que imaginamos dificilmente corresponderão à realidade. Com graus diversos de utopia e de distopia, correspondem antes a sonhos, temores e convicções sobre o que temos por certo e por melhor, para nós e para o mundo. Mesmo contendo resultados objetivos de análises prospetivas, são exercícios de esperança, de imaginação, de desejo.

Em tempos de disrupção global coletiva com os efeitos, ainda muito iniciais, da pandemia de 2020, podem ser importantes para o exercício das projeções de futuro as respetivas previsões (forecasting), mas também as conjeturas de sentido inverso (backcasting 1), relacionando diretamente tendências do passado com o que se prevê provável no futuro. A Associação Americana de Museus, por exemplo, promove a reflexão sobre a evolução dos museus através de workshops sobre “futuring” do Centre for the Future of Museums, destinados a desenvolver pensamento estratégico sobre desafios e oportunidades (2).

O momento em que escrevemos sobre algumas tendências de eventuais futuros no campo dos museus coincide com o lançamento do relatório preliminar do Grupo de Projeto “Museus no Futuro”, criado em 2019 por iniciativa governamental. A versão final deste relatório será conhecida em outubro de 2020, sendo as áreas de trabalho selecionadas as seguintes: Gestão de Museus; Redes e Parcerias; Transformação Digital; Gestão de Coleções; Públicos e Mediação.

A nível internacional, e desde 2018, discutem-se novas definições de museu, assumindo já não só para dentro do meio museológico, mas também para o exterior, a necessidade de atualização e de maior adequação da definição oficial internacional de museu aos desafios do mundo atual. Este é um processo que está longe de estar resolvido e que tem, entre outros potenciais benefícios, a grande vantagem de implicar novos estudos, reflexões e debates, tanto na esfera do academismo como na sua ligação à praticidade. O mundo dos museus está, efetivamente, em ebulição, nos seus enquadramentos conceptuais e profissionais.

Os museus foram sempre tanto sobre o passado como sobre o futuro. Na verdade, todo o trabalho dos museus está apontado para o futuro, a começar pela conservação do património, feita para que as futuras gerações dele possam usufruir e com ele se possam identificar e aprender mais sobre si próprias e sobre a sua história.

Cada decisão que tomamos nos museus sobre que objetos investigar, que conteúdos valorizar, estamos a influenciar, aos olhos do presente, o futuro de quem virá interpretar, aprender e interagir. Assim como toda a ação de mediação cultural tem efeitos diretos ou indiretos nos interlocutores, alterando perceções, aumentando o campo de conhecimentos, alargando sentimentos de identidade e de pertença (em relação a lugares, a culturas e a épocas da história). Influenciando, ainda que de modo microscópico e pontual, o futuro das pessoas.

Os museus partilham, sistematicamente, versões de futuros imaginados ou desejados pelos autores dos conteúdos expostos. Nos museus de ciência e técnica, mas também nos museus de arte, nos museus de cidade, nos museus de antropologia, de arqueologia, etc. Ocasionalmente, os museus que não só os de ciência e técnica, tratam diretamente a temática do futuro, como no caso da exposição “Futuros de Lisboa” que o Museu de Lisboa apresentou no espaço do Museu de Lisboa – Torreão Poente (Terreiro do Paço), em 2018. Desta exposição, ficou um notável catálogo que congrega reflexões plurais sobre possíveis futuros da nossa cidade, com textos dos comissários da exposição – João Seixas, Manuel Graça Dias e Sofia Guedes Vaz -, mas também de autores como Viriato Soromenho Marques, Manuel Sobrinho Simões, António Câmara e Cristina Gouveia, Rita Marta, Afonso Cruz, João Ferrão e outros.

 

Com o absoluto e inusitado choque provocado pela pandemia da COVID 19, os museus um pouco por todo o mundo foram forçados a tomar a atitude mais impensável e dolorosa: encerrar ao público por longos períodos. Por mais voltas que se venham a dar à sua futura definição internacional, os museus só são museus quando estão regularmente abertos ao público. Paulatinamente, à medida dos processos de desconfinamento de cada país e cidade, os museus têm estado a reabrir ao público com todas as medidas de segurança que tão bem conhecemos, e inevitavelmente, com poucos visitantes, em comparação com a situação anterior ao cenário da pandemia.

Durante o encerramento, os museus tentaram manter-se vivos, ou seja, ainda ligados aos seus públicos, mesmo que apenas em modo desmaterializado, a comunicar à distância em versões digitais, seja usando modelos tradicionais e repetidos, seja inovando e arriscando novos formatos mais ou menos profissionais, consoante os recursos disponíveis. Criaram-se assim, em muitos casos (como no Museu de Lisboa) novos públicos, que o futuro dirá se se tratarão de novos públicos digitais, ou também de novos visitantes físicos. Estudos sobre esta matéria, realizados nos últimos anos, revelam uma efetiva, mas não total, convergência, entre os públicos virtuais e os visitantes reais. Todavia, os públicos digitais, em número maior, tendem a manter uma relação mais próxima, regular e participada com a instituição museológica.

É em cenário de pós-estado de emergência e calamidade, mas ainda em contexto de pandemia, que apontamos quatro das muitas possíveis dimensões de futuro para os museus, de um modo geral: a) uma relação mais relevante entre os conteúdos dos museus e as ferramentas digitais, ou entre museus, tecnologia e virtualidade; b) uma maior valorização da perenidade dos museus enquanto instituições guardiãs de patrimónios e memórias, mas também da sua permeabilidade ao mundo exterior atual, promovendo diálogos cruzados e problematizantes para construções identitárias mais significativas; c) a credibilidade da instituição museu parece estar a merecer uma crescente atenção por parte dos públicos, aliada à autenticidade de patrimónios e histórias a que a deontologia dos museus obriga; d) os impactos dos museus nas sociedades são crescentemente estudados, não apenas em termos culturais e sociais, mas também no desenvolvimento económico e na importante dimensão do bem-estar.

 

Museus, tecnologia e virtualidade

Anterior à pandemia é a crescente e fundamental digitalização dos dados referentes aos acervos, em textos, imagens, vídeos e outros, para efeitos da consolidação da documentação, mas também para a criação de modos alternativos de comunicação, desmaterializados e distantes, quando necessário, do lugar físico do museu.

O advento dos “museus virtuais” começou por constituir uma novidade entusiasmante, dada a potencial atratividade e a miríade de possibilidades de tratamento e comunicação de referências antes estáticas, mas sempre com uma ligação intersticial à natureza do museu. No dizer de Bernard Deloche (2001), o museu virtual é o que duplica o original, tornando-se um “museu dos substitutos”, normalmente sem lugar nem paredes, mas igualmente real e eventualmente mais eficaz que o museu institucional (3).

Mais recentemente, assiste-se ao desenvolvimento continuado de ferramentas digitais que permitem níveis adicionais de perceção e de interpretação dos bens patrimoniais, tais como a realidade aumentada e as interfaces tangíveis, tendências oriundas do meio do entretenimento, mas que poderão beneficiar mais do que hoje, os públicos dos museus por meio do enriquecimento de conteúdos científicos e pedagógicos, quer nos seus efetivos espaços, quer à distância.

Desde o início da pandemia que a versão digital de muitos dos museus passou a protagonista, perante a impossibilidade de abrir as suas portas. A virtualidade passou a ser a sua única forma de comunicação com o mundo. Essa nova identidade digital, ainda por estudar em toda a sua plenitude, tornou-se mais intensa e perene do que a tradicional oferta de conteúdos digitais em sítios na internet e nas redes sociais. O que nos parece claro é que essas duas ontologias, virtual e física, são, no presente e porventura no futuro, complementares e nunca exclusivistas, exceto durante novos períodos de encerramento forçado dos museus que esperamos não voltem a ocorrer.

Seja como for, estamos convictos de que nada poderá substituir a experiência da efetiva visita a um museu, nem a fruição direta do seu património. Concordamos em absoluto com Alexandre Matos, acerca da impossibilidade da substituição da fruição dos objetos físicos pela comunicação digital, por mais atrativos que sejam os meios utilizados. Na sua opinião, “A tal luta entre Virtual vs Físico que digo não existir, deve ser vista como uma luta em integrar o digital naquilo que já existia antes, ou seja, o museu físico, as suas colecções e a relação entre estes e as suas audiências” (4).

 

Perenidade e permeabilidade

Embora, em alguns casos, padeçam ainda da injusta fama de repositórios de coisas velhas com atividade quase nula, os museus mantêm uma característica essencial: a perenidade. A constância parece ser ainda mais indispensável às sociedades de hoje, hiper-rápidas e promotoras do descartável. Os museus não deixam, nem deixarão, até por imperativo legal, de ser guardiões da memória coletiva: arquivam, estudam, tornam inteligível e transmitem a mesma. São, de igual modo, agentes da sua reinvenção, por meio das reinterpretações históricas e científicas, bem como dos efeitos da fundamental participação ativa das comunidades na compreensão e na comunicação dos patrimónios que estão à guarda dos museus.

Será crescente a permeabilidade do trabalho dos museus a interlocutores externos, vindos das comunidades diretamente relacionadas com os patrimónios estudados, e dos produtores de conhecimento científico nas mais diversas áreas. A porosidade ao exterior pode trazer conflitos, divergências, contradições e até alterações profundas na interpretação dos patrimónios conservados. Os diálogos cruzados entre disciplinas, diacronias e opiniões, se veiculados com seriedade e transparência, são fundamentais para o aprofundamento de construções identitárias mais significativas.

No sentido inverso, também se regista uma aproximação gradual das próprias comunidades aos museus, o que se prevê poder trazer crescentes resultados em processos de participação construtiva e coletiva dos públicos na programação, não só no sentido de democratização de acesso à cultura e de inclusão, mas sobretudo numa abordagem participativa e de envolvimento social.

É esse o terreno movediço, tantas vezes surpreendente e desconfortável, em que nos continuaremos a mover nos museus no futuro – entre as dimensões de templo e de fórum (5), entre a imanência da conservação e os movimentos dinâmicos criados pelo conhecimento e pela criatividade – que resulta em novos olhares e novas interpretações capazes, porventura, de criar relações mais eficientes e mais empáticas entre os patrimónios e os públicos.

 

Autenticidade e Credibilidade

De entre os principais valores que caracterizam os museus enquanto instituições, destacamos os da credibilidade e da autenticidade por nos parecer que se manterão valores de futuro. Os próprios profissionais pautam a sua atuação por esses princípios deontológicos, zelando pela veracidade das histórias que contam sobre as coleções que expõem e também sobre os modos de apresentação dos patrimónios imateriais.

As tarefas nunca completas de inventariação e de documentação que todos os museus desenvolvem, dedicam-se, em particular, ao garante da veracidade e da autenticidade, a par da investigação, mãe de todas as funções museológicas. O Código Deontológico do Conselho Internacional dos Museus (6) dá orientações fundamentais para que, precisamente, a autenticidade e a credibilidade das coleções e de toda a instituição sejam garantidas, mau grado os inevitáveis erros de interpretação histórica e mesmo a comunicação de inverdades, por vezes incompreensivelmente perpetuadas no tempo, como em alguns casos relacionados com as heranças coloniais. Será fundamental que, no presente e no futuro, os museus aprofundem o seu trabalho no campo do pós-colonialismo, contribuindo para a reescrita da história sempre que necessário e combatendo, explicitamente, o racismo e todas as formas de discriminação não consentâneas com o respeito absoluto pelo ser humano e pela natureza.

Segundo alguns estudos de economistas da cultura (7), nomeadamente europeus e norte-americanos, os museus constituem preciosas fontes de informação credível para o público em geral. A credibilidade da comunicação soma-se ao facto de serem instituições guardiãs de considerável manancial de memória coletiva tida por autêntica, ou seja, verdadeira. Em tempos de ruidosas fake news e excessiva desinformação veiculada pelos media e pelas redes sociais, estas características fazem dos museus entidades ainda mais fundamentais de per si, quer sejam ou não frequentadas por quem lhes atribui esses valores.

Recentemente, novos dados estatísticos norte-americanos assinalam um considerável aumento de credibilidade dos museus, face, por exemplo, à reputação de que goza o atual governo federal (8). Esse estudo aponta, ainda, um aumento da credibilidade de museus, zoos e aquários por se terem mantido durante o confinamento generosamente disponíveis, em versão digital, para alcançar os seus públicos e tentar melhorar um pouco as suas vidas.

 

Impacto dos museus ou a produção de significados relevantes

É bem sabido que os museus são relevantes para o desenvolvimento cultural e social das sociedades. Não, é, tão pouco, novidade que os museus são significativos para o desenvolvimento económico das comunidades. O efeito positivo no turismo será a face mais óbvia do impacto económico de alguns museus. No entanto, são, ou eram, muito poucos os museus (e, mais ainda, monumentos) que repetidamente acolhem o turismo de massas.

Para uma maioria de museus de funcionamento dinâmico, o impacto económico revela-se sobretudo por meio dos efeitos indiretos da atividade que gira em sua volta (nomeadamente os fluxos económicos inerentes à produção de exposições e eventos, cafetarias, merchandising, produção de livros, e ainda provenientes do comércio da envolvente, entre outros).

Porventura menos conhecida será a importância da contribuição que os museus têm para a saúde e o bem-estar, linha de investigação em franca evolução. Sobre este assunto veja-se o estudo levado recentemente a cabo pela OCDE em que os museus são vistos como poderosos catalisadores de desenvolvimento cultural e local (9). A análise contém facetas complementares entre si, tais como o papel dos museus na regeneração urbana e no desenvolvimento das comunidades; dos museus enquanto estímulo das sociedades criativas; e o papel dos museus como espaços de inclusão, saúde e bem-estar, uma das dimensões porventura mais relevantes e certamente de desenvolvimento futuro.

Na verdade, o que imaginamos poderem ser tendências futuras nos museus, pouco mais é do que o aprofundamento de alguns dos seus valores fundadores como os conhecemos, pelo menos desde a década de 1970, um pouco por todo o mundo, embora adaptados a novos contextos: os museus como espaços de paz e de diálogo; como arenas de promoção da diversidade em si mesma e da comunicação de novos conhecimentos; os museus enquanto catalisadores do respeito absoluto pelo ser humano em todas as suas multiplicidades e expressões, incluindo na luta contra o racismo e outras discriminações; os museus, ainda, como promotores da sustentabilidade global, preservando objetos e memórias, gerando conhecimento e recriando narrativas.

 

Joana Sousa Monteiro

Diretora do Museu de Lisboa

 

Notas

1- Ver Merritt, Elizabeth, “Backcasting: Or, how to apply 20:20 hindsight to museum planning”, Centre for the Future of Museums Blog, 06/03/2091; e “Reinventing Museums: Pandemic Disruption as an Opportunity for Change”, Centre for the Future of Museums Blog, 07/07/2020

2- Idem, “Workshopping the Future: Foresight in Hindsight”, Centre for the Future of Museums Blog, 09/03/2020

3- Bernard Deloche, Le Musée Virtuel, PUF, Paris, 2001

4- Alexandre Matos, “Virtual Vs Físico. A luta não existente.”, Mouseion Blog, 19/06/2020 (https://www.mouseion.pt/2020/06/virtual-vs-fisico-a-luta-nao-existente/)

5-Duncan Cameron, Ensaio “The Museum, a Temple or the Forum”, 1971

6- Versão portuguesa do Código Deontológico do Conselho Internacional dos Museus, publicado pelo ICOM Portugal em 2015, está disponível em versão digital em https://icom-portugal.org/wp-content/uploads/2015/03/CodigoICOM_PT-2009.pdf

7- Economistas da cultura como Françoise Benamou (2012), Pier Luigi Sacco (2018), Xavier Greffe (2017), Jean-Michel Tobelem (2010), entre outros.

8- Collen Dilenschneider, Data & Analysis, https://www.colleendilen.com/2020/07/08/data-shows-increased-credibility-of-museums-during-the-pandemic-data/ publicado a 07/07/2020

9- Culture and local development: maximising the impact. A guide for local governments, communities and museums, OECD/ LEED em parceria com o ICOM, 2018. O respetivo guia está disponível digitalmente em https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/9a855be5-en.pdf?expires=1594634751&id=id&accname=guest&checksum=B95800AF8ADFB5C47E5EC6A5E6A325A5

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