Museu Arte Nova na Cidade de Aveiro

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Capital da Arte Nova

Aveiro conquistou merecidamente o título de Capital da Arte Nova, reflexo do consolidado conjunto de edifícios e monumentos desta corrente artística que conserva e que, por sua vez, se reflete no brio da comunidade local e numa procura crescente pelos visitantes e turistas que chegam à cidade e se dirigem ao Museu Arte Nova. Públicos diversificados que vão do curioso pelo património local que
se deixa fascinar pela singularidade decorativa das fachadas, ao profundo conhecedor de Arte Nova que vem conhecer a coleção do museu e descobrir os pontos de contato e os particularismos que o movimento aqui assume.
Os particularismos estendem-se ao próprio projeto museológico. Sendo a expressão da Arte Nova em Aveiro ao nível do património edificado, a coleção do museu são as fachadas e os dois monumentos dispersos pela cidade. São estes que de forma privilegiada definem uma burguesia local dos alvores do século XX que, no seu espírito empreendedor, se deixou seduzir pela novidade e ousou ser moderna.

Visitar o Museu Arte Nova é, assim, percorrer Aveiro e ir em busca dos edifícios identificados por placas inspiradas em Charles Rennie Mackintosh. É, ainda, experienciar o ambiente de uma casa de chá, sentado nas cadeiras Thonet, num modelo que oriundo do período Arte Nova que ainda hoje se produz e tomar uma bebida numa das mesas desenhadas por Francisco Providência tendo por referência a natureza, a mesma que sobressai nos azulejos com lírios e que foi a grande fonte de inspiração do movimento Arte Nova.
O Museu Arte Nova é nesta junção entre um património vivenciado e uma coleção em espaço urbano um conceito museológico inovador, que é também inerente ao Museu da Cidade, do qual faz parte juntamente com o Ecomuseu Marinha da Troncalhada e que mereceu o reconhecimento e credenciação da Rede Portuguesa de Museus, em 2015. A mesma conjugação justifica a inclusão de Aveiro na Réseau Art Nouveau Network, que para além do grande dinamismo na valorização do património Arte Nova de várias dezenas de cidades que a integram é hoje uma reconhecida Rota Cultural Europeia que dá a conhecer um movimento que mudou paradigmas.

Arte Nova: romper com o passado
O movimento Arte Nova surge por volta de 1880 e foi impulsionado por uma conjuntura política, social e económica aparentemente estável e favorável. A industrialização, bem como diversas conquistas ao nível do progresso científico e técnico, encontram-se na raiz desta corrente artística, conduzindo a riqueza e, principalmente, ao desenvolvimento de novos estratos sociais. Foram os burgueses enriquecidos e a recém-nascida classe média os verdadeiros impulsionadores desta corrente, no sentido em que não se reviam e identificavam com o design dos objetos do dia-a-dia, bem como com os ideais arquitetónicos que se encontravam em voga e que se baseavam na reinterpretação de estilos do passado (clássico, gótico, renascentista, barroco…). Estes novos grupos sociais, modernos e cosmopolitas, precisam de um novo estilo, que espelhe os seus ideais. Neste contexto, a Arte Nova surge como uma resposta, com uma nova fonte inspiração centrada na Natureza, e, ao não se basear no passado, rompe com a falta de originalidade dos estilos caracterizados pelo revivalismo.
A Arte Nova espalha-se rapidamente e assume diferentes expressões individuais, abarcando várias escolas regionais ou nacionais, bem como recebe diferentes designações, conforme o local onde se implanta e desenvolve [Modernismo na Catalunha, Jungenstil na Àustria, Stilo Liberty, em Itália]. Sempre presente e unificando esta corrente artística surge uma nova linguagem estética que se expressa através da linha extensa, curva, sinuosa, em chicotada e através dos motivos florais, vegetalistas e femininos, estilizados, bem como sensuais.
A tardia industrialização de Portugal condicionou a implantação do movimento Arte Nova, levando a que esta corrente artística se estabeleça mais tarde do que no resto da Europa, desenvolvendo-se entre 1900 e 1920. Em simultâneo, o contexto social português levou à introdução de alguns aspetos típicos da cultura tradicional portuguesa, ganhando destaque a presença do azulejo.
As principais manifestações Arte Nova passam pelas residências familiares de pequena e média dimensão, pelos prédios de arrendamento e pelos pequenos espaços comerciais, padarias, sapatarias, joalharias, lojas de modas, etc. Assim, os proprietários destes imóveis foram os principais impulsionadores do estilo Arte Nova nacional e que, em geral, se encontravam entre os pequenos e médios comerciantes e industriais, destacando-se o seu refrescante sentido do moderno e cosmopolita.
O principal foco da Arte Nova nacional encontra-se em Aveiro e o aparecimento de imóveis com estas características encontra-se associado a um cenário de crescimento e prosperidade na cidade. A adoção do gosto Arte Nova pode ser seguida nas notícias publicadas no jornal local “Campeão das Províncias”– “[Aveiro] vai tomando uma feição mais civilizadora, pois, ultimamente, têm sido construídas casas de bela aparência, como são as do Sr. Francisco Augusto da Silva Rocha, distinto diretor da Escola Industrial…” (Campeão das Províncias, 8.11.1905) e “… a nova edificação que o capitalista, Sr. Mário Belmonte Pessoa, anda realizando no Rossio é o que de mais moderno e característico se tem feito…” (Campeão das Províncias, 11.01.1908).

Em Aveiro, o gosto Arte Nova recorre sistematicamente às cantarias e serralharias decorativas, mas, acima de tudo, ao azulejo, que na região virá a assumir características originais, pois a local Fábrica da Fonte Nova produziu vários painéis azulejares dentro deste gosto, assim como, em menor escala, a Fábrica dos Santos Mártires. A utilização do azulejo nas fachadas podia ser pontual, em frisos, por exemplo, ou podia assumir protagonismo, como se verifica na Antiga Cooperativa Agrícola e no Edifício Francisco Rebelo dos Santos. O azulejo surge, ainda, como um elemento decorativo de caráter Arte Nova em construções convencionais. O melhor exemplo da utilização de azulejo ao gosto Arte Nova numa construção sem mais elementos decorativos e de concepção tradicional é a Casa dos Lírios.

O grupo de responsáveis pela introdução e difusão desta corrente na cidade era bastante restrito, destacando-se o nome de Francisco Augusto da Silva Rocha. A ele se atribuí a autoria de uma grande parte dos imóveis Arte Nova de Aveiro. Simultaneamente, os nomes de Ernesto Korrodi (referência nacional e amigo pessoal de Francisco Silva Rocha), Jaime Inácio dos Santos e José de Pinho também surgem associados a esta corrente artística.

Um roteiro pela coleção do Museu Arte Nova

O Museu Arte Nova de Aveiro, instalado na habitação concebida para Mário Belmonte Pessoa, funciona como centro interpretativo da rede de edifícios ao gosto Arte Nova existentes na cidade. Além de oferecer os instrumentos para descobrir os pressupostos desta corrente artística, funciona como o ponto de partida para um roteiro que conduz à descoberta das expressões Arte Nova a nível local.

Na construção deste edifício, datado de 1907-1909, foram empregues os materiais tradicionais da época e muito explorados por esta corrente artística, o calcário, o mármore e os azulejos que se conjugam com o ferro forjado das varandas. A fachada é profusamente decorada, recorrendo a flores, animais e formas curvilíneas estilizadas. A verticalidade do edifício é acentuada pela mansarda com uma janela em arco japonês. No interior destaca-se a escadaria, em ferro forjado, que liga o primeiro ao segundo piso, bem como os azulejos que revestem até meia parede (lambril) as salas do rés-do-chão, onde se recebiam as visitas. Estes azulejos são provenientes da Fábrica de Sacavém e a nota de encomenda encontra-se guardada no arquivo do Museu de Cerâmica de Sacavém. A residência de Mário Pessoa, comerciante internacional de cacau de S. Tomé e Príncipe, ilustra a modernidade da burguesia mercantil do início do século XX, tanto na adoção do gosto Arte Nova como ao nível da nova organização funcional do espaço doméstico, com espaços próprios destinados à higiene, convívio e descanso. As divisões já não são sequenciais e, no primeiro piso, os quartos tinha acesso através de um corredor de distribuição. A luz natural e o arejamento foram uma preocupação na organização do espaço interior.

Do Museu Arte Nova, o roteiro convida a visitar o edifício da Pensão Ferro (1909-1910), cujo traço está atribuído a Francisco Silva Rocha, que a concebeu para habitação e oficina de Manuel Ferreira. A fachada é marcada pelo grande arco abatido, como elementos florais em serralharia artística. Em cada extremo situam-se dois medalhões alusivos ao proprietário, inscrevendo ferramentas de serralharia e elementos florais, destacando-se as palavras Honor e Labor, os ideais da pequena burguesia deste período.

Já de frente para o Canal Central destaca-se um dos mais belos exemplares de Arte Nova a nível nacional e internacional. O edifício da Antiga Cooperativa Agrícola evidencia-se pelo revestimento a azulejaria da Fábrica da Fonte Nova, datada de 1913 e de pintura manual por Licínio Pinto, distinto pintor de azulejos aveirense. Os motivos dos azulejos, especificamente criados para este edifício, partem quase sempre das bases arquitectónicas e acompanham os remates curvos tanto dos pisos como da cimalha. A cimalha é rematada com a famosa chicotada do movimento Arte Nova, denotando um claro entendimento dos pressupostos desta inovadora corrente artística.

Seguindo o roteiro pela antiga freguesia da Vera Cruz, destaca-se a residência do próprio Francisco Silva Rocha, datada de 1904, e uma das primeiras manifestações Arte Nova da cidade. Os pormenores da fachada incluem apontamentos azulejares com motivos florais e pavões de cor azul, rosa e branco em consonância com a serralharia da varanda. Salienta-se ainda a decoração dos arcos abatidos com palmas, um rosto feminino de longos cabelos no piso térreo e as letras S.R. gravadas em sobreposição, no segundo piso.

Nas proximidades, encontra-se o edifício atualmente designado de Hotel As Américas (1908-1910), projectado por José de Pinho para residência da sua filha. O recurso a formas estilizadas de cariz geométrico para representar elementos florais é bastante original. O tratamento dado à escadaria e ao telheiro, bem como a aplicação de um arco japonês na mansarda contribuem para a harmonia decorativa. Este edifício apresenta detalhes em azulejo, muito provavelmente de proveniência estrangeira, que surgem emoldurados pelo trabalho da cantaria.

Do lado da antiga freguesia da Glória, destaca-se a atual Fundação João Jacinto Magalhães, datada de 1908-1910 e projetada por Francisco Silva Rocha para residência do conhecido jurista aveirense Dr. Peixinho. Este imóvel denota um cuidadoso jogo e tratamento dos materiais, o revestimento a azulejo com friso contrastante, as cantarias em granito, o recorte da porta e o revestimento das águas furtadas a xisto. As serralharias são excelentes exemplares Arte Nova, patenteando a forma de um inseto.

A visita às fachadas pode ser concluída no edifício do Tribunal de Menores, desenhado por Jaime Inácio dos Santos, em 1918, para residência de João Machado. Neste edifício destaca-se o friso de azulejo, a cantaria em granito e a serralharia artística.

Além das fachadas de residências, a Arte Nova também surge, em Aveiro, na arte funerária. No Cemitério Central é possível ver alguns jazigos com decoração ao gosto Arte Nova, de que é exemplo o da família Barbosa de Magalhães, mas, de grande impacto é, sem dúvida, o Último Alento. Esta escultura funerária, com cerca de 2 metros e em bronze, é da autoria de Artur Prat e data de 1914. Aqui, a Arte Nova surge aliada ao Simbolismo, representando uma alegoria da morte. A obra compreende duas figuras: uma simbolizando a vida, a outra simbolizando a morte. A vida é representada por uma jovem mulher, formosa, em pé, e que segura na mão esquerda uma tocha acesa voltada para baixo, extinguindo-se.  A seus pés estão flores e, sobre elas, uma foice. A Morte é representada por um esqueleto coberto por um manto com capuz. A morte está por detrás da jovem e, quase que a abraça, ergue o braço direito para o céu. Em imagens mais antigas, constata-se que no braço direito a morte tinha uma ampulheta, claramente a indicar o tempo que chega ao fim, que foge.

Este passeio por Aveiro permite descobrir alguns dos elementos Arte Nova presentes da cidade e verifica-se que a corrente aveirense deste movimento artístico se reveste de aspetos originais, desde a utilização de azulejo produzido localmente, à adoção do gosto pelo Japão, com recurso frequente às janelas japonesas, e influência do Simbolismo, na seleção de alguns aspetos decorativos. Não obstante os elementos decorativos se concentrarem nas fachadas, as residências unifamiliares espelham a nova organização do espaço doméstico, com espaços funcionais destinados à higiene, por exemplo, e utilização de estratégias para a entrada de luz natural e arejamento.

Da modernidade nas vivências e do gosto do período Arte Nova ao conceito inovador em que a coleção do seu Museu está na rua, em pleno espaço publico, Aveiro afirma-se como a capital da Arte Nova.

 

Por: Ana Gomes, Andreia Lourenço e Gabriela Mota Marques
Foto: CM Aveiro

 

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