Lucrecia Martel é talvez a realizadora mais influente do século XXI. O seu cinema tornou- se imagem de marca da produção cinematográfica argentina e, de modo mais lato, um modelo para muito do cinema de autor contemporâneo, um pouco por todo o mundo. Nos seus filmes há sempre um mal-estar que ferve debaixo de uma aparente tranquilidade. Essa estranha sensação de incómodo surge através do seu gosto pelos planos longos, por um ritmo narrativo muito espaçado, pelo recurso às elipses nunca explicadas e pelo silêncio que quase sempre diz muito mais que qualquer linha de diálogo poderia.
O seu território é, frequentemente, o da família: uma estrutura em decomposição onde a realizadora lança a sua câmara a uma classe média burguesa onde a decadência é regada a álcool e discriminação (La Ciénaga). E juntamente com a família tradicional, também os modos do fervoroso catolicismo sul-americano passam pelo crivo abrasivo do olhar de Martel. La niña santa é uma provocadora e desconcertante desmontagem das ideias de fé e vocação religiosa através daquilo que de mais inocente há no mundo: as criancinhas. E a juntar a esta desconstrução, o mais enigmático dos seus filmes: La mujer sin cabeza, onde uma mulher à qual tudo deveria correr bem se vê abalada por um safanão que é, no fundo, a sua má consciência de classe.
O mais recente, Zama (depois de um intervalo de quase uma década), torna explícito aquilo que vários dos seus filmes anteriores já anunciavam: a questão do racismo para com os povos indígenas sul-americanos. Trata-se de uma viagem delirante a um passado onde se encontra o gérmen de uma identidade latina, fundada nos modos do colonialismo. Mas já várias das suas curtas abordavam esta questão: Leguas descrevia a segregação dos ameríndios no sistema de ensino e Nueva Argirópolis reflectia sobre a homónima proposta de confederação, através de um retrato da população indígena, do ecrã do computador à formação das ilhas no rio Bermejo, passando pela língua e pelos seus ofícios.
Os filmes de Lucrecia Martel foram comparados aos de Antonioni, Lynch ou Buñuel, mas o seu cinema é muito mais que o desespero latente do primeiro, o surrealismo onírico do segundo, ou a inteligente sátira sócio-política do terceiro. O cinema de Martel é uma criatura felina que, com extrema precisão, sinaliza, persegue e captura os pontos sensíveis da nossa sociedade, aqueles que lhe estão mais enraizados: as desigualdades sociais, o racismo internalizado e o preconceito tornado lei. Mas é também muito mais que isso. É um cinema que não tem pudor em
abrir-se ao inesperado, levando-nos num caudal de gestos e movimentos que que revelam o cinema como um território de infinitas possibilidades (que inclui um coro de carpas que sonharam ser um carro, Pescados).
Por:Cinemateca portuguesa