Revista Bica nº7 – Ebook

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Descrição

A avó Irene era a mãe do Sr. Professor do Cruzeiro. Tinha um ar tão delicado e frágil que às vezes parecia que se ia quebrar. Mas não quebrava.

A D. Ireninha, como era conhecida, tinha ficado viúva do Dr. Armando muito cedo. Coitadinha, sozinha, tão nova e com um filho nos braços. Era difícil imaginar a avó Irene com o que quer que fosse nos braços.

O neto da avó Irene passava os dias a ouvir as suas histórias e a aprender a ler com as Heidis da irmã e com os Major Alvega que trazia de Fataúnços, de casa da Tia Mila e do Tio Necas e que tinham pertencido ao primo Luís, filho da Tia Mila e do Tio Necas, que tinha morrido na Guerra do Ultramar. Mas, sobre esse assunto era proibido falar.

A avó Irene gostava de contar histórias. Contava que tinha estudado no Colégio das Doroteias, na Póvoa de Varzim. Ele não sabia onde era a Póvoa de Varzim. Nem sabia quem eram as Doroteias. Mas gostava de ambos do fundo do coração, porque faziam brilhar os olhos da avó Irene.

– Vês aquele quadro por cima da lareira? Pintei-o no Colégio, com 10 anos.
– Aprendiam a pintar no Colégio?
– A pintar, a falar francês, a tocar piano e muitas outras coisas.

Ele queria umas Doroteias só para ele, para o ensinarem a pintar e a tocar piano e todas as outras coisas que a avó Irene tinha aprendido.

A avó Irene não gostava da lavoura. Não que alguma vez o tivesse referido, mas lia-se-lhe na alma. A lavoura tinha-a afastado de tudo o gostava. Das amigas. Dos chás com scones quentinhos. Dos óleos, da pintura. Das noites de teatro. Das matinés de cinema. Da civilização… Mas, a avó Irene não gostava da lavoura, sobretudo, porque a lavoura, num acidente que dizem ter sido trágico, lhe roubara o seu grande amor e isso ela não podia perdoar.

Tinha um olhar triste. Duma tristeza de anos, que se transformara em amargura. Para ela tudo era sofrimento. Que seja tudo pela Graça de Deus, estava sempre a repetir, entre rosários rezados de joelhos, junto às imagens do Sagrado Coração de Jesus e da Nossa Senhora da Conceição.

Ele partilhava do fervor religioso da avó Irene e adorava ouvi-la contar as histórias da Bíblia e das vidas de Santos. Depois rezava com ela, de joelhos, pelo Sr. Professor do Cruzeiro, seu pai; pela Sra. Professora do Cruzeiro, sua mãe; pela menina Paulinha, sua irmã; pela Otília, que fora lá para casa pequenita, para brincar com a D. Ireninha ainda os Bisavós eram vivos e que depois de muitas peripécias dignas de filme, voltara para ajudar a criar o menino Carlinhos, Sr. Professor do Cruzeiro, e agora o ajudava a criar a ele.

Não sabia o que era criar, mas devia ser importante, porque a Otília tinha um poder que ninguém ousava questionar.

Um dia, encheu-se de coragem e perguntou à avó Irene o que era criar. Ela, com o olhar fixo no seu, o mesmo olhar intenso e brilhante com que fitava as imagens do Sagrado Coração de Jesus e da Nossa Senhora da Conceição sempre que se ajoelhava para rezar, disse-lhe que criar era ajudar a ser Homem. Ensinar a estar à mesa, a brincar, a rezar, a contar, a escrever e, sobretudo a ler. Sim, sobretudo, a ler, porque quem lê, aprende a ver o mundo pelos olhos dos outros.

Era sábia a minha Avó Irene.

Sei que continua a acompanhar-me, muito provavelmente, preocupada com as minhas leituras.

Acho que vai gostar desta edição da Bica.

por João Moreira