Revista Bica nº6 – Ebook

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Descrição

Lembro-me dos galos: nas férias ouvia-os antes de adormecer quando a noite desistia. Lembro-me dos galos: eram o avesso da cidade.

Pedro Mexia, in Poemas

 

Do que primeiro me lembro é da serra ligeiramente pintalgada de branco. Creio que, por essa altura, não sabia que era uma serra, ou talvez já tivesse ouvido o nome. Serra. A serra era talvez a única coisa que tinha uma existência autónoma. A serra era a serra. Tudo o resto tinha pertença. A vinha do lado era a vinha do Sr. Luisinho. A nesga de pinhal atrás era a nesga de pinhal da Cristina. Por cima, a casita cercada de currais era a casita do António. E o próprio António era o António da Noémia.

Os pinhais em frente, colados à vinha mais bonita que já tinha visto, eram do Sr. Professor. Que, por acaso, era o Sr. Professor do Cruzeiro. Que, por acaso, era meu pai. Eu era o menino Joãozinho. Ou melhor, o filho do Sr. Professor do Cruzeiro.

Hoje, talvez me pareça estranho, mas, na altura, simplificava tudo. Era uma espécie de GPS local, sem espaço para erros e sem necessidade de actualizações.

– De quem é a junta de bois que vai levar as uvas este ano?
– Ora, é a mesma de sempre. É a do Joaquim Corgas.
– Mas ele não morreu?
– Claro que morreu, menino. Em Junho, que Deus o tenha. Não se lembra? Era bom homem, o Corgas.
– Então a junta já não é dele.
– Num sabe que agora quem anda com ela é o Carlos da Laura? Ele é que comprou a junta do Joaquim Corgas à mulher.
– Então é a junta do Carlos da Laura.
– Olha agora! O menino tem cada uma. Ouviste, ó Toino? A junta do Carlos da Laura, ah, ah! É a junta do Corgas, e mais nada.

Era assim. As casas mudavam de dono. As terras mudavam de dono. As juntas de bois mudavam de dono. Mas, como que para garantir as origens, continuavam agarradas aos seus proprietários originais. Era como se a venda dos bens não incluísse a sua propriedade intelectual. Eu gostava das coisas assim.

Gostava de brincar com o Paulo da costureira e com os filhos do cesteiro, o Fernando e o Toino, que, por acaso, ou não, eram vizinhos e primos do Paulo, e eram craques da bola. O Fernando era do Sporting, e gostava de contar as histórias das vitórias dos Cinco Violinos, que ouvia do pai. Acho que foi por causa dele que fiquei do Sporting, para a vida, embora goste de pensar que foi por causa do meu primo Tó. O Toino era benfiquista ferrenho, e nem podia ser outra coisa. Ainda hoje acho que o Toino era o Benfica. Ninguém como ele representava tão bem a imagem que eu tinha do “Glorioso”. Com um coração do tamanho do mundo, o Toino transfigurava-se quando se falava mal do Benfica, e não poucas vezes assentava uns pares de tabefes no irmão ou em qualquer sportinguista que estivesse por perto. Ouvir um relato de bola ao lado dele era uma aventura única. Uma emoção. Eu ria-me a ouvi-lo. Ele ria-se a ouvir-me repeti-lo. – “Ó menino, não diga essas coisas à frente do paizinho. Olhe que ele dá-lhe uma coça, que nunca mais se endireita.” E eu mortinho por repeti-las. Eram “asneiras”, diziam, mas, isso, eu ainda não sabia. Não sabia muitas coisas.

Passaram 83 anos, e nunca repeti uma “asneira” à frente do “paizinho”, embora, por uma ou outra ocasião, o tenha ouvido repeti-las. Ria-me interiormente, e lembrava-me do Toino e da promessa das coças, que acabei por nunca levar. Quando comecei esta aventura da Bica, em conversa com o meu pai, ele sugeriu-me que escrevesse sobre esta vivência aldeã de que me afastara, por, em seu entender, conter uma genuinidade única e ser um repositório de tradições orais e vivenciais, que rapidamente desapareceria. Devia tê-lo feito antes, mas aqui fica agora um pedaço dessa memória infantil, numa edição inteiramente dedicada às tradições.

Espero que goste.