Revista Bica nº5 – Ebook

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Descrição

“O sal das minhas lágrimas de amor
Criou o mar que existe entre nós dois
Para nos unir e separar
Pudesse eu te dizer
A dor que dói dentro de mim
Que mói meu coração nesta paixão
Que não tem fim
Ausência tão cruel
Saudade tão fatal
Saudades do Brasil em Portugal”

Vinicius de Moraes

 

Há coisas que não se explicam. Sentem-se. Assim é a minha relação com o Brasil, e em particular com o Rio. Muito antes de visitá-lo pela primeira vez, já éramos íntimos. O oceano que nos separava parecia reduzido ao tamanho de um pequeno curso de água, que eu pulava com facilidade para chegar à outra, ambicionada, margem. Quase diariamente, deambulava pela Avenida Rio Branco ou pela Presidente Vargas, perdia-me nas pequenas ruelas do Centro e no Arco do Teles parava para ouvir as rodas de samba, antes de me sentar na penumbra do Bar Luiz a tomar o melhor chope do centro da cidade. Mais tarde, havaiana no pé, short e camiseta, e sorriso aberto ao sol de verão, feito carioca, percorreria o calçadão, do Leme ao Leblon, adentrando por vezes (mais do que as desejáveis) nas refrescantes ruas de Copacabana e de Ipanema para chopear e bater papo sobre futebol, quase único tricolor, num mundo de vascaínos e flamenguistas. Com o fim de tarde, recolhia-me à Travessa para um café regado a livros e revistas, antes de um passeio pela Visconde de Pirajá e uma oração rezada em silêncio na pequena Igreja de Nossa Senhora da Paz, partindo, depois, noite adentro pelos botecos de Botafogo e pela animação incontida da Lapa.

Muitos anos decorreriam até que aterrasse pela primeira vez no Galeão, ou melhor, no Aeroporto Internacional António Carlos Jobim e pudesse confirmar, ao vivo e a cores, cada um dos motivos dessa incontrolável paixão. Dessa primeira vez, quando a porta do avião se abriu e senti no rosto uma baforada de ar quente, percebi que aquela era mesmo a “minha praia”. E nem o trajecto pela Linha Vermelha, ladeada de favelas, numa espécie de choque de realidade, nem o cheiro putrefacto da Baía de Guanabara, presente de Deus envenenado pelo Homem, mudaram o meu encanto pelo Rio.

Foram precisos outros tantos anos para que o Brasil me entrasse porta adentro e enchesse de colorido a minha pátria. Já não o Brasil submisso e iletrado de garçons e diaristas, antes um Brasil moderno, cosmopolita e arrojado de artistas e empresários, assumidamente orgulhoso de si próprio e empenhado em influenciar culturalmente o lado de cá do Atlântico. Nunca como hoje, foi cumprido o sonho de Oswald de Andrade, de exportar a cultura brasileira como se exportara o pau-brasil. Talvez, para isso, tenha sido necessário que o Brasil nos descobrisse sem complexos e se deixasse apaixonar por este país de negreiros, o primeiro a abolir a escravatura, por este país ultramarino, o primeiro a emancipar pacificamente a sua maior colónia, por este país de combatentes, o primeiro a extinguir a pena de morte.

Nesta edição, comemoramos esses novos colonizadores do lado de lá do Atlântico, esses retrocolonizadores, como decidimos chamar-lhes, que decidiram fazer de Portugal o seu porto de abrigo, trazendo na bagagem a riqueza da sua diversidade cultural que ajudamos a construir, enriquecendo com cheiros, cores e sons diferentes um país que urge “desengravatar-se”.