Revista Bica nº1 – Ebook

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Descrição

“O silêncio não existe porque é o constante rumor de uma inexistência. O que se ouve, para além do movimento da cidade, é o monótono murmúrio do nada.”

António Ramos Rosa, in “Relâmpago de Nada”

Do que mais me recordo é de que a casa tinha alma. Sons, cheiros, movimento e uma permanente desarrumação inerente às casas com vida. Livros largados despreocupadamente sobre sofás, com os cantos das folhas dobrados, marcando o término da última leitura; cartas abertas, esquecidas sobre as cómodas; jornais dobrados sobre a mesa, manchados aqui e ali por gotículas de café escuro; casacos atirados para cima das cadeiras de canto; mesas redondas cobertas de molduras de prata com retratos de rostos familiares amarelecidos pelo tempo; chávenas abandonadas em velhos contadores de pau santo; um suavíssimo perfume de alfazema pelos corredores; um roupão perdido há muito por trás da porta da casa de banho; o ranger da janela da sala de jantar e uma interminável azáfama na cozinha. Lá fora, o cheiro a terra remexida, misturado com o aroma intenso das flores e das frutas amadurecidas. Crianças largadas às suas brincadeiras, fazendo bolos de areia, subindo às árvores, rolando alegremente na erva ainda húmida do orvalho nocturno, acompanhando, encantadas, carreiros de formigas ou surpreendendo-se com o canto dos pardais.

Do que mais me recordo é de que a casa tinha alma. Uma alma que lhe vinha dos sons que marcavam o dia-a-dia. Vozes de comando na cozinha interrompidas aqui e ali pelo barulho ensurdecedor de tampas de panelas atiradas ao acaso para o lava loiça; o uivo lancinante do vento forçando entrada pelas frestas da porta do primeiro andar; o reconfortante crepitar da lareira em noites de Inverno; o suave arpejo das folhas do velho castanheiro nos crepúsculos de Verão; o latido longínquo dos cães; a voz melodiosa de Chet Baker vinda do escritório e embalando toda a casa e o silêncio. Acima de tudo o silêncio.

É de sons que falamos nesta edição da Bica. Dos sons antigos que fazem as memórias das casas e das cidades e de sons novos que lhes entregam outro colorido; dos sons que incomodam e de outros, reconfortantes, que atenuam a solidão. Dos sons que, de uma forma ou de outra, são a marca indelével da nossa identidade. Como o das inconfundíveis paisagens sonoras que os Deolinda desenham há mais de 10 anos para nossa alegria, ou como os de Tó Trips, o virtuoso da guitarra, que nos transporta em harmoniosas viagens pelo mundo. Sons de humanidade que se sobrepõem aos sons dos tiros e das bombas, como nos conta Paulo Moura e sons de Lisboa descritos com humor pelo Embaixador Seixas da Costa e pelo Fernando Madaíl. Sons dos vinhos descobertos pelo André Pinguel e sons que se entranham no nosso corpo e nos impelem a dançar, como presenciámos nos ensaios da Companhia Nacional de Bailado. Sons electrónicos explorados pelo Bernardo Mascarenhas de Lemos e o som do silêncio que a Tatiana Salém Levy diz ter descoberto em Lisboa.

É de sons que falamos nesta edição da Bica.

Espero que gostem!

por João Moreira