O livro de que hoje lhe falo tem o silêncio como base de uma história em que nada do que parece, é. Quantas vezes estamos convictos daquilo que nos dizem para, mais tarde, perceber que, afinal, não fazia qualquer sentido.
Quando duas pessoas iniciam uma conversa, há um aspeto que parece ficar suspenso no ar, sem nunca ganhar a consistência merecida. Falo da responsabilidade que cada um tem sobre aquilo que diz mas, também, o que não diz.
Escrito em 1938, «Rebecca», de Daphne Du Maurier, tem ainda hoje, um tema que esmiuçado em profundidade, encontra a atualidade dos dias apressados, em que se assumem convicções próprias como verdades universais. Se há mensagem que não pode ser compreendida, é aquela que não se pronuncia. Este é um livro sobre mensagens vagas e escondidas no silêncio de quem não ousa abrir a boca, sobretudo se a pessoa a quem gostaríamos de questionar uma infinidade de coisas, já morreu.
Esta é a história de uma frágil e jovem mulher, de quem nunca conheceremos o nome. Mulher simples, acanhada nos gestos, inibida nas palavras, é cuidadora de uma senhora inglesa, mais velha. Será no decorrer de uma estadia em Monte Carlo, e através daquela senhora, que a jovem conhecerá Maxim de Winter, recentemente viúvo. Entre os dois nasce uma rápida cumplicidade, descrita por longos passeios e conversas que seriam mais monólogos, perante o silêncio dela, sempre tão tímido e ritmado. Depressa se apaixona pelo magnetismo irrevogável daquele homem, aceitando um repentino pedido de casamento. Dizem que o amor requer tempo para amadurecer mas, na verdade, mais do que tempo, o amor precisa de certezas. Esta jovem vivia na certeza de amar Maxim, e será essa verdade convicta que faz deste livro uma das histórias de amor mais bonitas de sempre. E isso, caro leitor, não significa fogos de artifício, grandes proezas ou rosas vermelhas. Esta é uma história de amor que nasce e prolifera na sombra de uma mulher ausente.
Ao entrar na mansão Manderley, a jovem percebe estar casada com um homem de grandes posses, contudo, igualmente farto em segredos e omissões sobre a morte da mulher Rebecca, um ano antes.
As paredes da casa acentuam a presença de uma morte ainda muito viva. O primeiro passo dado em direção aquela casa, faz sentir na jovem a certeza de que tempos difíceis virão. O ar que ali se respira é pesado e em cada gesto silencioso da governanta, impera uma voz que relembra a inesquecível Rebecca em todos os mais pequenos detalhes. As loiças, a mobília, os cortinados, cada pequeno detalhe, enfatiza o deslumbramento de uma mulher ausente mas, na perspetiva da jovem, muito mais presente naquela casa do que qualquer outra pessoa.
A cada dia, a inadequação da jovem vai crescendo, em muito, motivada e orquestrada por uma governanta zangada e fiel à antiga senhora da casa. Serão muitas as crueldades contra a jovem recém-chegada e que, forçosamente, potenciam a inibição que sempre a caracterizou. Também o silêncio da própria casa e de todas as personagens que vão passando por ali, cuspindo segredos, alimentando intrigas, farão crescer nela uma curiosidade permanente sobre quem era aquela mulher, sempre tão viva.
Há todo um tormento progressivo ao longo da história, criando na nova esposa de Maxim, a tendência para calar ainda mais e especular mais ainda. A curiosidade e o sentimento de inferioridade crescem num paralelismo aflitivo, gerando numa quase inconsciência, uma teia de suposições cada vez mais enraizadas, cada vez menos realistas.
Na sequência do receio que a domina, cria em si mesma histórias para lá do possível. O silêncio ensurdecedor fez nascer em si uma história feita de suspeitas, de perguntas infecundas, de receios que se basearam na aparente admiração que Rebecca suscitava em tudo e em todos.
O leitor será compelido a torcer para que esta mulher se decida a falar, a questionar, a impor-se num mundo que agora é dela, mas em que as palavras não ditas parecem sempre gerar uma história em que nada do que parece, é. A autora criou, magistralmente, um conjunto de personagens inibidas para comprovar o silêncio como a base de uma história distorcida, irreal. Aquelas histórias que perdem o sentido original para se forrarem de uma interpretação que não é mais do que a soma da vida de quem se prontificou, apenas, a ouvir. Sabemos de antemão que um livro assume realidades distintas para quem o lê, e o mesmo acontece naquele cenário de uma conversa. Quando duas pessoas comunicam, toda uma nova história pode ser criada na mente silenciosa de cada um, e isso dá muito que pensar.
Daphne Du Maurier escreveu uma história que nos obriga a refletir no poder das palavras mas no igual poder da sua ausência. Todas as agruras que esta jovem mulher viverá, formam-se pela sua incapacidade de questionar. Todas as histórias criadas e movidas pela curiosidade de quem realmente tinha sido Rebecca, originam uma catadupa de incertezas, receios e uma enorme tristeza. Desafio-o a que sinta a leitura deste livro como um exercício urgente do quanto deixamos de viver baseados nas convicções de uma verdade, não universal, mas pessoal. Reconhecer medos e receios como o grande dogma das histórias mal contadas, fará com que o destino das coisas boas nos transfira para um caminho muito mais solto.
Foi assim com esta jovem mulher, a partir do momento em que o véu de uma mentira por si imposta cai e pode, finalmente, enxergar o real sentido das palavras que lhe chegam do homem que sempre a priorizou.
Quantas histórias mal contadas o estão a impedir de viver a melhor versão da sua vida? «Rebecca» irá, penosamente, fazê-lo refletir sobre isso.
No final, agradecerá.
Por Denise C. Rolo*
*Blogue Literário «Ler(-te)»