JÚLIO MACHADO VAZ – O AMOR É… “UM SORRISO DE MULHER DEPOIS DO AMOR”.

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Júlio Machado Vaz, o psiquiatra, psicoterapeuta, professor universitário, radialista e escritor, que, no final dos anos oitenta pôs o país a falar sobre sexo, tem consultório em Santo Ildefonso, num terceiro andar que em nada se assemelha ao imaginário dos consultórios psiquiátricos dos filmes de Hollywood. É nesse espaço decorado de forma clássica e austera que o mais famoso psiquiatra português recebe diariamente, já lá vão trinta e cinco anos, os portugueses que o procuram em busca de auxílio para as suas ansiedades, depressões e neuroses. Ele próprio, hipocondríaco confesso, também atravessou um processo depressivo, aos 28 anos, que o impediu de trabalhar. Nunca escondeu a depressão por que passou, apesar de avisado pelos colegas de que isso representaria um suicídio profissional, porque “nunca ninguém iria pedir ajuda a um psiquiatra que admitiu estar deprimido”. Na altura optou por ir fazer um estágio na Suíça, “uma fuga para a frente” como reconhece, que acabou por lhe abrir os horizontes para uma temática pouco em voga no nosso país e que acabaria por o tornar famoso – a sexologia.

Júlio Guilherme Ferreira Machado Vaz nasceu no Porto, no Bonfim, no final da primeira metade do século passado. Bisneto de Bernardino Machado, o único Presidente da República destituído por duas vezes (por Sidónio Pais, em 1917 e pelo golpe militar que instituiu o Estado Novo, em 1926), filho da famosa cantora Maria Clara e do professor de bacteriologia Júlio Machado de Sousa Vaz, doutorou-se em Psicologia Médica no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, depois de uma licenciatura em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde foi aluno de seu pai. “Como as aulas teóricas não eram obrigatórias e as do meu pai eram às 8h30m da manhã, não punha lá os pés, e o meu pai sabia, porque saía para a faculdade e eu ficava em casa, calmamente. Sofreu um bocado na altura do exame. Por uma questão ética, não me ia examinar. Foi substituído por outros dois professores. Acabei por tirar 19 valores”, contou em entrevista ao jornalista Paulo Farinha, do DN.

Da relação com o pai, “parcimonioso nos afectos”, guarda a imagem de um “amor envergonhado”, em muito compensado pela proximidade que mantinha com a mãe, Maria Clara. A ela, Júlio contava tudo, até os “desgostos de amor da adolescência”. “A minha mãe, com uma certa dose de “perversidade”, deu-me o extraordinário conselho que fez com que eu não desesperasse em relação a uma das namoradas da adolescência. Eu achava que ela nunca olharia para mim e ia-me afastar, porque aquilo já me era doloroso. E a minha mãe, com uma enorme sageza disse-me: “Olha, vocês são amigos, não são? Então mantém-te próximo. As mulheres são especiais. Os homens podem ser bonitos, podem dançar bem” – era tudo aquilo que eu dizia que os outros tinham e eu não – “mas há sempre um ponto em que as mulheres descobrem que precisam de conseguir conversar com eles. E se tu te transformares no rapaz com quem ela está habituada a conversar, podes ter uma surpresa.” E acertou em cheio.”

Com os filhos, João, doutorado em Filosofia e psicólogo de profissão, e Guilherme, arquitecto, mantém uma ligação quase umbilical e não esconde o orgulho que tem por cada um deles. “Quando penso na Casa da Arquitectura, ou na minha própria casa em Cantelães (projectadas pelo filho Guilherme) fico muito orgulhoso e cheio de inveja. Da primeira vez que vi na Amazon a tese do João, voltei a pensar o mesmo. “O meu filho mais novo tem um livro na Amazon.” Fiquei outra vez cheio de orgulho e com inveja.”

Em 1989, Júlio Machado Vaz iniciou uma colaboração radiofónica na Rádio Nova, com o programa O Sexo dos Anjos, que o catapultaria aos ecrãs da televisão, transformando-o no mais conhecido psiquiatra português, com o programa Sexualidades. Ao longo dos últimos 30 anos, foi uma presença regular nas televisões e, sobretudo nas rádios, onde ainda mantém o programa O Amor é… com Inês Meneses, depois de parcerias com António Macedo e Ana Mesquita. Pelo meio escreveu mais de uma dezena de livros e manteve as consultas, que continua a dar ao ritmo de cerca de 15 por semana, sem intenção de parar. Reforma, só do ensino universitário, que pediu antecipadamente, por considerar que o “ambiente já não era saudável”.

Quanto ao resto, como confessou a Anabela Mota Ribeiro a propósito de seu livro autobiográfico “O Tempo dos Espelhos”, publicado em 2006, “A minha vida não foi nem será um romance apaixonante para os outros, de tão banal. Mas continuará a ser vivida apaixonadamente, como merece”.

Conversámos com Júlio Machado Vaz no seu Porto, “esplendorosamente cinzento”, sobre uma vida “que se fez assim, com as respectivas nódoas negras e medalhas”.

 

O que é que mudou na psiquiatria desde que o Sr. Professor começou a dar consultas?

Em termos da clínica?

Em termos da clínica, em termos da aceitação por parte da sociedade da importância da psiquiatria, em termos da sexualidade dos portugueses…

No fundo as coisas estão ligadas… Em termos da clínica, reflectindo a sociedade, estou a receber mais casais do que alguma vez recebi, o que traduz o facto dos homens virem com mais facilidade às consultas, tanto em casal, diga-se de passagem, como individualmente.

Desmitificou-se a ideia de que os problemas do foro mental e sexual eram algo que só as mulheres assumiam tratar?

Desmitificou-se essa ideia, mas deixou de existir o preconceito contra a psiquiatria? Não. Deixou de existir o preconceito de género? Não. Quando eu comecei a fazer clínica quase só havia mulheres, porque os homens defendiam “nós temos de ser capazes de resolver os nossos problemas sozinhos, etc.”. Esses preconceitos desapareceram? Não. Mas atenuaram-se muito. Depois, também há aí reflexos da progressiva maior autonomia das mulheres. Hoje em dia, tanto em termos individuais, como em termos de casal, recebo homens que vêm às consultas, mas preferiam não vir, que vêm para salvar uma relação, que vêm porque a sua companheira, se estivermos a falar de heterossexuais, como é evidente, (embora também aconteça em casais homossexuais), mas a sua companheira alertou para a existência de problemas ou na esfera sexual ou na esfera relacional e avisou “se tu não os tentas resolver é porque não investes na relação a sério e a relação acaba”. Isto era impensável há 30 anos, as mulheres não tinham este poder reivindicativo. Isto reflecte a diferença de estatuto cultural e financeiro das mulheres nos dias de hoje. Com a sua entrada em massa no mercado de trabalho podem, por exemplo, pôr fim a uma relação e serem autossuficientes.

Essas transformações sociais e culturais das últimas décadas, que incluem uma mudança radical na forma como os portugueses olham para as relações afectivas e para o sexo em particular, também se devem, em muito, ao papel pioneiro que o Sr. Professor desempenhou com os diversos programas em que abordou esses temas, em particular o Sexualidades.

Por causa do Sexualidades, durante muito tempo, as pessoas tinham uma imagem minha que era totalmente errada. A área que eu trabalho há mais tempo é a da toxicodependência e grande parte das pessoas não sabe. Muitas tinham a ideia de que eu fazia sexologia 7 dias por semana, quase 24 horas por dia, o que não correspondia nada à realidade.

Arrependeu-se?

Não, mas eu sou um psicoterapeuta, basicamente. O que acontece é que com essas alterações houve uma mudança radical na sociedade. Por exemplo, há 15/20 anos eu recebia uma percentagem muito maior de queixas do foro da sexologia clínica do que hoje. Hoje, eu e os meus colegas recebemos, sobretudo, inúmeros casais que o que nos vêm perguntar é “a relação está esgotada ou não?”, “ainda gosto dele/dela ou sou dependente?”, “conseguimos aguentarmo-nos juntos? É que ainda gostamos um do outro e, no entanto, estamos sempre a discutir”. Isto são problemas relacionais. Por outro lado, a geografia afectiva mudou de tal maneira, que os equilíbrios são cada vez mais difíceis. O José Gameiro escreveu, há uns anos, um livro espantoso, que só o título valia o livro: “Os Meus, os Teus e os Nossos”. Estas novas geografias afectivas obrigaram as pessoas a adaptarem-se aos mais diversos níveis. Com quem se passa a Ceia de Natal? E o almoço do dia de Natal? Por outro lado, nós, os mais velhos, nem sempre temos o bom senso de manter os mais novos afastados das nossas querelas e isso significa que, às vezes, há conflitos de lealdade, em que os mais novos sentem que, para que o pai ou a mãe se sintam gostados, têm que fazer uma aliança contra o outro pai ou outra mãe, coisa que eles não querem fazer, não é por acaso que os sociólogos dizem que nós vivemos numa sociedade cada vez mais adolescente, toda ela. Por exemplo, os meus colegas neurologistas agora já vieram dizer que o desenvolvimento do cérebro só se atinge efectivamente a partir dos 24 anos. Ora eu cresci imbuído da palavra inglesa teenagers que significa dos thirteen to nineteen. Isso está fora de questão, porque mesmo os mais velhos são muito mais inseguros nas suas trajectórias, não só amorosas, como laborais. Cada vez mais as pessoas têm de se habituar que vão ter 2/3/4 empregos diferentes ao longo da vida. Quando me formei, sabia que ia ser médico até me reformar, ponto final parágrafo. Isso está a acabar completamente, portanto, este clima de incerteza é evidente que se reflecte na nossa vida. O Manuel Sobrinho Simões gosta de dizer: “nós adoramos pastilhas e automedicações”, não é por acaso que esta subida constante de consumo de ansiolíticos e de antidepressivos acontece.

Que se deve a quê, na sua opinião?

Deve-se ao facto de as pessoas viverem num stress brutal, cada vez mais depressa, cada vez mais obrigadas a determinados níveis de produtividade e numa sociedade, que, por ser uma sociedade de consumo, em vez de passar a mensagem “pare um bocadinho e veja se consegue reduzir o seu ritmo de vida” insiste na difusão de métodos para aguentar o stress.

As redes sociais vieram agravar esse problema ou, pelo contrário, passaram a ser uma forma de escape?

Hoje, com esta possibilidade da comunicação instantânea introduziu-se uma outra possibilidade real que está sempre a acontecer. Aquilo que antigamente nos surgia no espírito e que nós poderíamos pensar em fazer, mas dificilmente concretizávamos: escrever uma carta anónima, fazer um telefonema anónimo, pensar em denunciar isto ou aquilo, passou a estar à distância de um clique. Não é por acaso que todas as semanas temos alguém que pensou e fez e depois arrependeu-se, e se for como eu, um analfabeto digital, pensa que se safou, mas não se safou nada, porque aquilo já está na Patagónia, e nunca mais de lá sai. Nós temos pessoas a dizer “não fui eu, invadiram-me” e outras desculpas quejandas. Isto faz com que haja um efeito multiplicador que leva desde as fake news a autênticos linchamentos de carácter. Hoje, tenho as maiores dúvidas que valha muito a pena alguém ir para tribunal por difamação, para defesa do bom nome, e não digo isto por causa da lentidão da justiça, digo porque depois das questões levantadas, nada as trava, até porque a difamação vem na primeira página e o desmentido vem na quinta. As pessoas estão predispostas a acreditar ou não acreditar mediante a opinião que têm de determinada pessoa e depois aquilo tem um efeito multiplicador, tornando-se numa avalanche que é impossível estancar. A lama está lançada: quem não acredita, não acredita; quem acredita, acredita. As redes sociais não nos transformaram, porque todos nós somos capazes do pior e do melhor. Deram-nos instrumentos para o fogo se espalhar a uma velocidade tremenda.

Já tive casos de pessoas que me contaram que cortaram relações com outras que eram suas amigas porque essas pessoas criaram perfis falsos, pediram-lhes amizade e conversaram com elas para um dia trocarem opiniões sobre si mesmas para ver se a outra pessoa dizia bem ou mal.

Isso já é perverso.

Claro que é. Estou-me a lembrar de um caso que perante a afirmação de uma pessoa, “Respeito a sua opinião, mas peço que não fale mal da outra pessoa porque é minha amiga”, a outra diz, “Fiquei muito contente porque sou eu que estou deste lado”. Como é evidente a outra pessoa cortou relações com ela no preciso momento. Já para não falar no que tudo isto abriu em termos de psiquiatria clínica. Cada vez recebo mais pessoas que me chegam porque vasculharam os telemóveis, o Facebook, o Instagram, o WhatsApp dos parceiros e dizem: “Veja o que ele escreveu”, “Veja o que ela escreveu”, chegando ao cúmulo, e isto se não fosse trágico era hilariante, de pessoas que chegam cá a mostrarem o telemóvel, eu olho e digo: “Ou é dos meus olhos ou não vejo mensagem nenhuma” e a pessoa contrapõe, “Exactamente! Isto é muito estranho. Porque é que ele apaga as mensagens todas?”.

Nós vivemos numa sociedade completamente paranoide que é potenciada por aquilo que temos à nossa disposição.

Não considera que estamos a atravessar uma fase de enorme crispação?

Em primeiro lugar, estamos a viver uma fase do imperialismo do politicamente correcto em tudo. As pessoas têm muito medo de não estar alinhadas com um discurso politicamente correcto. Por outro lado, o que acontece é que os movimentos organizados estão cada vez mais crispados. A minha avó dizia “Quem não está comigo, está contra mim”, e isto cada vez se nota mais, porque as pessoas estão mais crispadas, agressivas e os movimentos também. A discriminação continua a existir, e temos de ter cuidado com o facto de os grupos não serem homogéneos.

Durante muito tempo os transsexuais sofriam tanta discriminação por parte dos homossexuais como dos heterossexuais. Os homossexuais diziam que eles eram homossexuais envergonhados. Os grupos não são homogéneos, por exemplo, eu ouço homossexuais que detestam paradas gay e me dizem, “Eu compreendo, em teoria, que nós precisamos de visibilidade para sermos respeitados, para mostrarmos que também somos um grupo que vota”, tudo isso é verdade, mas em contrapartida em termos de sensibilidade, aquilo não lhes agrada. Temos de ter cuidado quando falamos de grupos por causa da nossa tendência para tornar o grupo homogéneo, e os grupos não são homogéneos.

Dito isto, estamos a aproveitar até ao tutano o que as novas tecnologias nos podem dar. A medicina é um magnífico exemplo, embora esteja no meio da ponte entre, preguiçosamente, ter a nostalgia de que a tecnologia possa fazer o seu trabalho. Aparece-me muita gente que chega aqui e diz, “Eu gosto muito do meu médico de família, mas ele já não olha para mim, só olha para o computador”, e eu tenho de dizer, “Sabe que se ele não olhar para o computador está tramado, porque tem tantas coisas para preencher que não tem tempo”, mas o doente não tem culpa.

Por um lado, há esse olhar, por outro, Portugal e Espanha estão a finalizar livros, e eu próprio escrevi um capítulo, para candidatar a relação médico-doente a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO. Nesse artigo que eu escrevi no capítulo eu cito um colega meu suíço que diz, “Em 20 anos a inteligência artificial terá substituído os médicos humanos”, ele não disse os médicos, não os médicos humanos e isso implica que para ele há médicos não humanos em todas as etapas, seja diagnóstico, tratamento e acompanhamento em estados terminais até à morte, porque já estamos a desenvolver programas empáticos que dizem às pessoas o que elas querem ouvir.

Está a ver o que nos espera…

 

Por João Moreira 

Fotografia: Bruno Esteves

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