James Joyce e John Huston, irlandeses

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«The Dead» («O Morto?», «Os Mortos?», conto, breve nota

Quem lê a obra de James Joyce percebe de imediato que os contos de Dubliners (1914) contêm já, ainda que em versão precoce, minimalista, as características dos textos posteriores do escritor irlandês, a saber: A Portrait of the Artist as the Young Man (1916), Ulysses (1922) e Finnegan’s Wake (1939). Resulta também evidente que em Dubliners ainda não existe aquele grau de complexidade narrativa, técnico-formal, que é marca de água indelével dos outros e, consequentemente, os tornaria muito mais difíceis de adaptar ao cinema. Seja como for, para quem adaptou a obra-prima de Melville, Moby Dick, um dos mais complexos romances até hoje escritos, com a sageza e a proficiência de J. Huston, talvez a tarefa não fosse excessiva, sendo certo que seria sempre de máxima exigência.[1]

Na bela edição da Macmillan, cuidada e elegante, em bom papel, de que me sirvo, como julgo que farão todos aqueles que querem preservar esses maravilhosos objectos que são os livros em papel, há um curto mas excelente Posfácio que levanta duas questões essenciais à compreensão da atmosfera de parálise, imobilidade e medo que marcam todos os contos da colectânea, muito em particular «The Dead». Aí se pode ler: So, where does this sense of paralysis, of immobility, and of fear, come from? Although never explicitly mentioned in Dubliners, I would hazard a guess that it has its roots in two things, both of which are what might be called the city ‘occupying powers’. Estas duas forças de ocupação da cidade a que se refere o autor do Posfácio, Peter Harness, são a Coroa britânica, através de tropas e da elite protestante, e a Igreja Católica (que lançou os mais violentos anátemas sobre Charles Stewart Parnell [1846-91] quando se conheceu o relacionamento extraconjugal que mantinha com Kitty O’Shea, fazendo assim gorar todas as esperanças de resolução pacífica do conflito irlandês e destruindo a saúde e a vida do próprio Parnell), forças estas que, embora pudessem teoricamente ser opostas, na prática se entendiam perfeitamente para manter o status quo e criar o tipo de atmosfera atrás referido. Esta nota sobre esse clima de estase é importante porque o filme retrata-o com grande mestria e subtileza.

John Huston, vivo (mas quase morto)

 Os críticos da nouvelle vague, em especial François Truffaut, que definiam as suas preferências muitas vezes com base em preconceitos de ordem ideológica (e estética), nunca manifestaram grande apreço pela obra de John Huston, considerado por eles (quando andavam a farejar pelas salas das cinematecas na tentativa de identificar as características daquilo que chamaram auteur no âmbito da produção hollywoodiana) um cineasta demasiado ecléctico em matéria de temas e formas. [2]

E no entanto Huston não se esgotou no cliché daquela figura «vitalista», conflituosa e corajosa que em 1944 acompanhou o exército norte-americano em Itália, onde filmou, arriscando várias vezes a própria vida, um dos documentários mais célebres, controversos e verdadeiros sobre a guerra: The Battle of San Pietro.[3]  Foi um leitor aplicado e de gosto europeu, não fosse ele descendente de irlandeses, tendo aberto caminho em Hollywood como argumentista, o que lhe permitiu trabalhar com realizadores como William Dieterle, William Wyler, Howard Hawks e Raoul Walsh, entre outros nomes importantes da época; também não será despiciendo referir a colaboração (não referida no genérico) que manteve com Orson Welles em The Stranger (1946).[4]

Passa, com toda a naturalidade, à realização: The Maltese Falcon (1941, com Humphrey Bogart no papel de Sam Spade, lendário detective criado pelo perfeccionista e radical Dashiell Hammett), The Treasure of Sierra Madre (1948, novamente com Humphrey Bogart como intérprete principal), Key Largo (1948, de novo H. Bogart), The Asphalt Jungle (1950, com o extraordinário e denunciante Sterling Hayden), The Red Badge of Courage (1951), The African Queen (1952), Moulin Rouge (1952), Beat the Devil (1953), Moby Dick (1956), The Misfits (1961, em que Clark Gable e Marilyn Monroe dão praticamente as últimas), The Night of the Iguana (1964, com direcção de fotografia do genial Gabriel Figueroa) e por aí fora até The Dead (1987): estes títulos (e poderiam ser mais[5]) são suficientes, creio, embora confirmando o eclectismo, para reduzir a pó as avaliações preconceituosas que muitos fizeram e fazem (o único erro [incompleto], que eu conheça, de Cabrera Infante) e fazem da obra do mestre. Aliás, esse eclectismo não foi senão a forma pessoalíssima de Huston se adaptar ao modo de produção hollywoodiano a cujas regras também não se furtaram outros grandes realizadores norte-americanos: afinal, ontem, como hoje, havia que garantir o almoço e o jantar, de preferência em The Brown Derby, Romanoff’s, Perino’s, Musso & Frank’s Grill, Ciro’s e Chasen’s.

E agora o filme, O Morto (?)/Os Mortos (?) 

Desde a estreia em 1987, The Dead, com o título português de Gente de Dublin, foi genericamente acolhido pela crítica e pelos espectadores como uma obra-prima. Não deve ter influenciado em demasia este apreço a morte quase imediata do realizador, que há muito se encontrava doente mas determinado a fazer este último filme, mesmo estando forçado a trabalhar numa cadeira de rodas e assistido por bombas de oxigénio. Tratou-se de um acto de obstinada dedicação à vontade de levar a cabo esta adaptação, um desejo ditado por razões distintas: por um lado, razões de natureza artística e, por outro, razões de natureza privada e emocional, como adiante se esclarecerá.

O argumento é, portanto, baseado no último e famoso conto da colectânea Dubliners, de James Joyce, sendo que a adaptação cinematográfica é considerada por muitos críticos como um exemplo esclarecedor de fidelidade em termos de transposição (transliteração) de um meio para outro («Uma obra-prima de fidelidade ao texto literário, ou melhor, um extraordinário modelo de lucidez e estratégia na passagem da literatura ao cinema», li algures). De facto, o argumento convém aos acontecimentos narrados por Joyce até no respeito que revela em relação às proporções entre as várias secções. Como acontece em todos os outros contos de Dubliners, também neste «episódio» dublinense a temática de fundo é a imobilidade, a incapacidade de mudar, um estado de estase carregado de sentidos inesperados. A trama, precisamente por essa razão, fica reduzida a poucos elementos:  o verdadeiro catalisador e impulsionador da narração é uma série de movimentos interiores, i. e., a dinâmica emocional das personagens.

Epifania de 1904 (dois domingos depois do Natal): como ocorre todos os anos durante as dilatadas festividades natalícias irlandesas, as irmãs Julia e Kate Morkan e a jovem sobrinha Jane, pianista e professora de piano (interpretadas de forma soberba, respectivamente, por Cathleen Delaney, Helena Carroll e Ingrid Craigie) organizam uma ceia com numerosos convidados. Poucos são os momentos relevantes do evento: a chegada dos convivas (uma humanidade diversificada, espelho da classe média da cidade, gente de mediano nível cultural mas de alguma dignidade comportamental), com os preparativos habituais e a progressão da ceia, durante a qual se discorre sobre vários assuntos (música, por exemplo), tudo devidamente condimentado por esparsas referências às questões do nacionalismo que imperava na época e da religião.

No final da ceia, por ocasião das despedidas, o sobrinho das irmãs Morkan, Gabriel (interpretado por Donald McCann), que teve a responsabilidade de fazer o discurso em louvor das tias, e a mulher dele, Gretta (interpretada por uma excepcional Anjelica Huston), acabam por adquirir uma posição de predominância e, em boa verdade, assumem-se como protagonistas, posição esta que até então pertencera essencialmente às duas irmãs, se bem que num contexto coral bastante equilibrado.

Quando as cenas se desenrolam fora da casa das irmãs Morkan, passamos a acompanhar Gretta e Gabriel que seguimos desde que entram no fiacre até que chegam à pensão onde pernoitam. É aí que se consuma o ponto fulcral da narrativa, aquilo que o título do conto reflecte: O Morto (?)/Os Mortos (?): Gretta tinha ficado muito comovida, quando todos se despedem das anfitriãs, ao ouvir uma canção entoada pelo tenor Bartel D’Arcy (interpretado por Frank Patterson). Na última cena percebemos o motivo de tanta comoção: a canção que ela ouve, «The Lass of Aughrim», era cantada pelo jovem Michael Furey, companheiro de passeios pelos campos que lhe devotava uma paixão não inteiramente declarada mas suspeitada. O jovem, já doente, acabará por comprometer definitivamente a saúde e morrer pouco depois apenas para se despedir de Gretta quando esta partia para o colégio num dia de chuva e frio intensos.

A confissão deste acontecimento, que Gabriel desconhecia, suscita nele uma reflexão que o entristece profundamente e, partindo do modesto papel que, afinal, percebe representar na vida da mulher, se amplifica até tocar o supremo e final evento da morte e aquilo que lhe está ligado: tudo isto está no conto e no filme.

Como já se disse, o respeito pelo texto literário é elevadíssimo, sendo por isso, indispensável reflectir sobre as razões que levaram Huston a escolher esta obra para realizar um filme que sabia ser o último. A coincidência entre a própria doença e a morte iminente, por um lado, e o tema do conto de Joyce, por outro, é um elemento que deve ser ponderado e é fácil falar do filme como expressão de um genuíno e voluntário testamento, facto que, diga-se de passagem, já foi assinalado por inúmeros críticos. Todavia, parece que não basta esta consideração para esclarecer os motivos da opção: explicar a génese deste trabalho tão extraordinário apenas por meio do imediatismo contingente da auto biografia, como noutros casos sobejamente conhecidos, redutor e primário. A opção de Huston é, na verdade, motivada por outros aspectos que é imprescindível considerar: há, como já foi referido, um conjunto de motivações estéticas e íntimas sobre as quais é oportuno falar agora, porque podem realmente explicar o peso da necessidade que Huston sentiu de estabelecer um diálogo com Joyce, i. e., uma conversa entre  um cineasta e um escritor que partilham uma qualidade que para outros poderia ser insignificante: a cultura deles é irlandesa.

Por certo, uma componente forte terá sido esta das origens comuns, descendendo Huston de uma família irlandesa de pergaminhos que lamentava ter perdido a casa ancestral: é portanto um retorno às origens, entendido sobretudo como sublimação de uma filiação cultural específica e não como mera manifestação de nostalgia serôdia.

Numa entrevista concedida pouco antes da morte (1987), Huston disse de Joyce:

R: «É o escritor que mais me emocionou. Ulisses exerceu uma influência na minha geração que perdura ainda hoje. […]

P: Mas disse algures que “The Dead” era a única obra de Joyce que gostaria de adaptar ao cinema. Porquê?

R: Porque constitui uma narrativa durante tudo o seu desenvolvimento. O interesse do conto reside em pequenas notas de carácter reveladoras das personagens que são apresentadas, a possibilidade que nos é dada de as conhecer e formular juízos sobre elas.[6]»

Razões estilísticas profundas, como se vê, que enriquecem decididamente o quadro. Além da filha Anjelica, também o filho Tony[7] participou no filme assumindo a escrita do argumento que, sem nunca ser servil, é, como já foi assinalado, tão fiel ao relato de Joyce: mas talvez o termo correcto seja leal e não fiel.

Quanto à banda sonora, haveria muito a dizer, mas por agora bastará referir que Huston contratou um compositor reconhecido e competente, Alex North: Um Eléctrico Chamado Desejo, Morte de Um Caixeiro Viajante, Viva Zapata, Spartacus, para citar apenas alguns dos seus trabalhos mais relevantes. Huston e North já tinha colaborado em três filmes (The Misfits, Under the Volcano e Prizzi’s Honor) e percebe-se que a combinação é muito produtiva. North criou uma banda sonora de eloquente sobriedade: a presença da música é discreta, respeitando essencialmente as marcas do texto joyceano.

 

Em certos momentos, como na parte derradeira do filme, a música adere à profundidade da reflexão que Huston faz na esteira de Joyce diluindo-se e tornando-se parte dela, quase se reduzindo ao silêncio: um sotto voce notável e elegante. Estamos, então, perante uma simbiose exemplar – anti-retórica, de raras sensibilidade e sinceridade – entre imagens e música que nos deixa estupefactos e indefesos perante as derradeiras e vertiginosas palavras de Joyce, que se citam em inglês para se poder perceber a musicalidade interna que as caracteriza:

A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleepily the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.

 

Por Salvato Teles de Menezes

 

[1] Escreveu Vincent Canby: The free-ranging restlessness of Huston’s mind is seen in his choice of authors: B. Traven, Dashiell Hammett, Herman Melville, Richard Condon, Rudyard Kipling, Noel Behn, the fellows who wrote the Old Testament, W. R. Burnett, Flannery O’Connor, Malcolm Lowry and now (one might think the most difficult of all) James Joyce. It’s not, however, just the variety of writers that’s of interest but also the particular material. The New York Times, 17 de Dez, 1987.

[2] Também Guillermo Cabrera Infante, na que deve ser a única avaliação errada que cometeu, não atribuiu a John Huston o merecimento devido.

[3] E ainda os outros documentários de guerra: Winning Your WingsReport from the Aleutians e Let There Be Light.

[4] Em Portugal, O Estrangeiro.

[5] Em especial, para mim, Fat City (Cidade Viscosa, 1972), com Stacey Keach e Jeff Brigdes.

[6] Em John Huston Interviews, ed, by Robert Emmet Long, University Press of Mississippi/Jackson, 2001.

[7] Tony Huston, na qualidade de argumentista, participou no IV Festival Internacional de Cinema de Troia (1987), no qual apresentou The Dead.

 

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