HUMANO DEMASIADO HUMANO

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Circulava pelas sete bolas de granito que delimitavam o passeio da rua. Tinha acabado de beber um chá, no apartamento de onde vislumbrava os arranha-céus de outro continente. Estava a tentar memorizar a letra de uma canção que o ajudasse a suportar a separação. Ia ser difícil, ficar por ali a vaguear no meio das pombas, no meio das ruínas, contra o cinzento da paisagem. Era verdade, tinha que ficar sozinho. Sem abraços. Mas, todos diziam que ia correr bem. Sem sobressaltos, dedicava-se à culinária e a reler velhos policiais, onde o assassino era sempre apanhado entre dois Lucky Strike e um bourbon. Fazia de contas que arrumava a casa, soltava os parafusos dos equipamentos, voltava e verificava se sobravam peças das instruções em italiano. Seguramente eram as instruções mais sensuais. Como era muito metódico, olhava-se ao espelho a tentar perceber se aqueles dias o faziam mais velho. Nem era bem o caso, a pele estava mais seca como a roupa que tinha esticado, mas o vento havia de o compensar quando procurasse a beira do mar. Perguntava-se como havia de preencher o vazio e cumprir a promessa de que esperaria por voltar ao supermercado para comprar um bouquet de flores. Estava sentado na varanda, a olhar os lobos que nunca passaram naquela rua, ou antes, que terão passado noutros dias, em que as estrelas a ocidente estiveram a brilhar. Onde afinal, estavam os seus irmãos que tinham partilhado os estilhaços de uma garrafa, enquanto viajavam com o sol na cara e se afastavam do solo com a poeira a levantar. Talvez fosse mais prudente serenar nos papéis dispersos, na secretária atrás da porta envidraçada que deixava escapar a luz. Pendurou a cabeça na estante inútil e alcançou o candeeiro. Desligou e escondeu-se no sofá, atrás dos sonhos.

Quando voltou. O telemóvel guardava um sms: obrigado por ter retomado o contacto connosco.

 

Confinado em Viseu a 30 de março de 2020.

Por Eduardo Arimateia

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