Gonçalo Cadilhe

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“O mais importante para se levar numa viagem é uma boa ideia.”

Gonçalo Cadilhe

 

A primeira viagem de Gonçalo Cadilhe, o figueirense de 51 anos que há mais de 30 percorre o mundo de mochila às costas, foi a Cantanhede, com os escuteiros, tinha na altura sete anos, e nem o susto de ser perseguido por um maluco com uma faca de barrar manteiga o impediu de repetir a experiência. Durante os cinco anos seguintes participou em mais de 100 acampamentos, sempre com o mesmo espírito de curiosidade e aventura do primeiro dia. Aos doze fez-se ao mar, em Buarcos, prancha na mão e uma vontade indomável de surfar a onda perfeita. Na época, a Figueira da Foz fazia parte de um roteiro obrigatório para os surfistas de todo o mundo e o contacto com esses aventureiros de “espírito livre” abriu-lhe os horizontes. Percebeu que “a vida é muito mais do que tirar um curso e depois ir trabalhar”. O curso, acabou mesmo por tirar, Gestão de Empresas, na Universidade Católica do Porto, e ainda trabalhou como director de marketing numa empresa, mas o apelo das viagens foi mais forte e em Fevereiro de 92, publicava, na Grande Reportagem, a primeira, de centenas de crónicas, que fariam dele o mais conhecido e conceituado “viajante profissional” de um país pouco habituado a viajar. Dez anos depois, iniciou a viagem da sua vida, uma volta ao mundo sem usar aviões, arrastando com ele, durante 19 meses, um país inteiro, a dormir em autocarros, à boleia de camiões ou em porões de cargueiros. Com Planisfério Pessoal, livro que compila esses relatos semanais publicados no Expresso, democratizou a percepção que os portugueses tinham das viagens e mudou, para sempre, o paradigma da escrita de viagens no nosso país.

Desde aí nunca mais parou: aventurou-se África acima, a pé; viajou no tempo e na História Nos passos de Magalhães e nos de Santo António; durante doze meses, procurou, em outros tantos lugares do mundo, as doze ondas perfeitas, sempre com o intuito de nos mostrar O Esplendor do Mundo.

Conversámos, com Gonçalo Cadilhe, sem efabulações como prometido, num dos melhores spots de praia do país, o B’ART, na Murtinheira, na companhia da Sónia e do Martim, num final de tarde quase tão perfeito como o dia em que apanhou a sua melhor onda em Arugam Bay, no Sri Lanka.

Como é que um figueirense, vira um viajante?

Essa pergunta, de como comecei a viajar, independentemente de ser da Figueira da Foz ou não, nem se devia colocar. A grande questão deveria ser: porque é que em Portugal, nos anos oitenta, alguém com vinte anos, não viajava.

Porque é que em Portugal se continua a viajar tão pouco?

Porque não há dinheiro. A viagem é um bem de consumo. É um luxo para quem não tem dinheiro, para quem tem, é uma banalidade. Em regiões como a Austrália, a Nova Zelândia, a Califórnia, que são as que conheço melhor por causa do surf, existe uma enorme tradição de viajar, como acontece nos países nórdicos, na Holanda, e na Alemanha. Toda essa gente se farta de viajar.

Desde os anos 80 que ouço falar no gap year e no bilhete round the world, que, por três mil euros, te permite viajar durante um ano. Se tiveres a facilidade (lá está, uma vez mais, a questão do poder de compra) de, durante os três anos da universidade, ao sábado à noite, trabalhares num part-time, que pode ser a distribuir pizzas, numa economia forte, juntas o dinheiro suficiente para estares um ano a viajar. Isso, na maio- ria dos países europeus é absolutamente banal e gera o hábito de viajar.

No teu caso tiveste de andar a vindimar no Médoc e em Sauternes.

Numa altura em que no Médoc e em Sauternes, só andavam a vindimar jovens estudantes universitários da chamada Europa Ocidental. Hoje em dia, vais ao Mé- doc à procura de trabalho e encontras tanta concorrência de extra-comunitários, de marroquinos, de gente de leste, e o trabalho é tão mal pago, que se acabou esse romantismo. As coisas mudaram muito.

Regresso à questão inicial. Num país onde se viajava pouco, como é que te tornaste um viajante?

Tive a sorte de começar a fazer surf com 12, 13 anos, aqui, na Figueira da Foz, em 1981, 1982, numa altura em que pouquíssima gente em Portugal fazia surf e ainda se chamavam os bombeiros ao domingo à tarde, quando se avistava gente na água a surfar, porque os domingueiros pensavam que eram náufragos (risos).

Nessa época, a Figueira da Foz estava dentro de uma rota, que hoje já não tem grande predominância, mas na altura era uma referência para surfistas de todo o mundo, que

partia do País Basco e terminava em Marrocos, com uma série de ondas conhecidas a nível internacional. Desde os anos 60, gerações de surfistas, sobretudo australianos, desciam em Londres do avião, na tal volta ao mundo, compravam uma carrinha pão de forma num mercado à saída do aeroporto e juntavam-se em grupos de quatro, não se conhecendo de lado nenhum, para fazerem o mesmo itinerário: descer até ao País Basco, daí seguir a estrada que passava por Burgos e Salamanca, entrando em Portugal pela Guarda, fazer o IP5 até chegar a Aveiro, onde não havia nenhuma tradição de surf. A primeira grande etapa de surf era a Figueira da Foz, portanto eu cresci numa cidade que já estava no mapa dos surfistas e cresci a falar inglês com eles, o que me permitia perceber a maneira de olharem o mundo e isso abriu-me imenso os horizontes. Eles ficavam três, quatro semanas enquanto havia ondulação boa, quando a ondulação caía, desciam para a Ericeira, Peniche e depois Marrocos. Este era o circuito das ondas, geralmente incluído dentro de um ano a viajar pelo mundo, em que os meses de Setembro e Outubro eram passados em Portugal. Isto ainda hoje é válido, ou seja, ainda hoje se sabe que o melhor mês para estar em Biarritz é Agosto, o melhor mês para estar em Mundaka, uma onda no País Basco, é Setembro e em Portugal, Outubro. Não é por acaso que o campeonato do mundo que se realiza em Peniche é em Outubro. Portanto, nessa época, eles passavam por aqui, depois iam passar o inverno a Marrocos. Era um circuito que já estava bem definido. Foi aí que eu percebi que a vida é muito mais do que tirar um curso e depois ir trabalhar.

Embora tenhas acabado por tirar o curso de Gestão de Empresas na Católica do Porto.

Acabei por tirar, sabendo que serviria para uma vida paralela àquela que queria.

A grande paixão era o surf…

(Sorriso rasgado). A primeira prancha de surf que tive, esperei um ano e meio para a poder comprar. Comecei a fazer surf no verão de 81 e só no inverno, em Dezembro de 82, é que apareceu um australiano no parque de campismo, que queria vender a prancha e eu tinha dinheiro que chegasse para a comprar. Isto, para te dizer, que desde o início do surf que fiquei em contacto com a ideia do viajante. O surf está ligado às viagens, porque, obviamente, as ondas não vêm ter contigo, tens de ser tu a ir ter com elas. Esse foi o primeiro motor para eu viajar. Portanto, passei toda a adolescência a sonhar com viagens. Quando fui para a universidade já andava desesperado para encontrar uma alternativa. Realmente, no final dos anos 80, ninguém viajava, ninguém tinha essa informação sobre as viagens da mochila às costas, os hostels, o bilhete round the world, ninguém sabia nada disso, só as elites é que viajavam e viajavam à maneira delas, organizando grandes expedições de jipe. Essas eram as aventuras. Eu apareci na cena com uma abordagem inédita em Portugal. Não fui eu que a inventei, pelo contrário, apenas a trouxe para cá e tive a sorte de ser o primeiro e no momento certo, no momento em que, no país, começaram a aparecer uma série de revistas de viagens. Estou a falar dos anos oitenta, noventa, depois todas as revistas generalistas passaram a ter uma secção ou duas de viagens.

De onde veio o gosto pela escrita?

É inato. Sempre gostei de escrever. Talvez de muita leitura e… como não sabia pintar, sou incapaz de desenhar um gato, percebi que, dentro daquilo que me era fácil…

… podias ter escolhido a música. Também andaste por lá, na Escola de Jazz do Porto…

… mas, se calhar, não consegui fazer vida de viajante (risos). A forma de me tornar viajante foi vender reportagens, vender crónicas, a princípio muito a medo, muito formais.

A primeira foi para a Grande Reportagem.

Sim. Depois, foram dez anos a vender reportagens a todo o tipo de revistas e jornais.

A verdade é que as tuas crónicas revolucionaram a forma de escrever sobre viagens em Portugal.

Acho que, sobretudo, revolucionaram a percepção que os portugueses tinham da viagem. De repente, perceberam que viajar era uma coisa democrática. Liam as crónicas e pensavam: “este gajo vai com a mochila às costas, dorme no autocarro a noite toda para poupar o dinheiro do hotel, come nos mercados e às vezes tem de comer insectos ou molho de formigas” e começaram a perceber que também elas podiam fazer isso. Contribuíram para fazer desaparecer a percepção que os portugueses tinham, de que quem viajava e quem escrevia sobre viagens era um privilegiado e de que viajar era algo reservado às elites. Essa democratização do sonho talvez tenha sido revolucionária. Por outro lado, acho que também contribuíram para desmistificar a ideia, que ainda hoje existe um bocadinho em Portugal, de que a viagem é aventura e de que quem viaja é um tipo cheio de coragem. Não é. Hoje em dia, das coisas mais banais, homologadas, enquadradas, no sentido de

não ser out of the box, é viajar. A coisa mais corriqueira para um hooligan da classe média baixa inglesa que quer fugir ao inverno de Inglaterra, já não é ir para o Algarve por- que já não é barato, é ir para a Tailândia. A maioria dos destinos são tão óbvios, tão massificados, tão acessíveis, que não percebo porque é que, em Portugal, as pessoas ainda se espantam quando alguém diz que vai três meses de mochila às costas para o Laos ou para a Birmânia. Está tudo tão banalizado, que tenho muita dificuldade em entender esse preconceito de associar viagem a aventura e coragem. Quando decidi tornar-me um viajante, a única coragem de que precisei foi para enfrentar a família por causa do preconceito de estar a abandonar um emprego de director de marketing e deixar uma casa que já tinha comprado. Essa foi a grande coragem, a de ir contra a mentalidade da época, porque quando saí, sabia que ia encontrar milhares de pessoas a fazer o mesmo que eu.

O que mais te surpreendeu?

O que me surpreendeu foi o mundo editorial dos guias de viagens. Um mundo que era absolutamente desconhecido em Portugal. O facto de existirem milhões de exemplares da Lonely Planet e do Guide du Routard, de cada livraria ter, pelo menos, uma parede dedicada só a livros de viagens.

Lembras-te do primeiro guia que compraste?

Lembro-me perfeitamente. Foi na minha segunda viagem, que foi ao México. Comprei o meu primeiro guia já na Cidade do México, na livraria do Consulado da Embaixada Francesa. Era uma livraria francesa, a que fui porque, no avião, estava um francês a consultar um Guide du Routard que tinha os preços dos hotéis, os horários dos comboios, a descrição dos monumentos. Perguntei-lhe onde podia comprar e fomos ver ao próprio guia e lá dizia onde se podia encontrar na Cidade do México, na tal livraria da Embaixada. Quando cheguei, comprei o meu primeiro guia, que me abriu a curiosidade para tudo o que era natural ou paisagístico, os highlights do país, que de- pois permitiam escrever as reportagens. Ia para fazer surf, mas com o guia, sabia que a três horas de autocarro conseguia ver as pirâmides, a cinco horas conseguia ver uma cidade Património UNESCO e comecei a recolher material para possíveis reportagens, que acabaram por pagar a viagem do surf. Foi assim que começou.

Pagava-se melhor por uma reportagem de viagens, nessa altura?

Pagava-se a mesma coisa. Já não escrevo para revistas, mas, basicamente, há uns três anos, surgiu um convite da Volta ao Mundo para escrever sobre um tema qualquer. Escrevi uma crónica e aquilo que me pagaram, não foi muito diferente do valor objectivo que, em 1981, ganhei a escrever para a Grande Reportagem. Na altura, era muito mais raro aparecer alguém a escrever um texto sobre uma viagem de mochila às costas do que agora, em que tens milhares de pessoas em Portugal a fazer a mesma viagem e quase pagam para verem o artigo publicado, portanto, mudou tudo.

A curiosidade pela descoberta de lo- cais e culturas diferentes surgiu com as viagens?

Teve a ver com a educação que recebi. Com o facto de ter nascido numa família, culturalmente de classe média alta, com gosto pela leitura. Depois, entrei para os escuteiros, onde todos eram da mesma classe cultural e o nível de conversas era interessante. Pode dizer-se que cresci interessado e curioso, ou melhor, com as ferramentas culturais para me interessar e ser curioso por coisas que acabaram por me ser úteis na escrita.

Quais foram os autores que mais te influenciaram?

Já depois de tomada a decisão de escrever e de vender o que escrevia, comecei a ter modelos de referências literárias. Desde logo, Raymond Carver, um autor com uma escrita muito sucinta e que termina os contos de uma forma curiosa, deixando tudo em aberto. Se leres o que escrevo, percebes que gosto muito de deixar tudo em aberto, embora goste de fechar mais do que Carver (risos). Depois, gosto muito do estilo seco de Raymond Chandler, talvez por ter viajado por São Francisco e ter sentido curiosidade em ler esse ambiente de detectives. Sempre gostei muito das histórias do Raymond Chandler embora não tenho o hábito de ler policiais, no entanto, o estilo do Raymond fascina-me. Lês as primeiras páginas de um Philip Marlowe e aquilo é mesmo roído até ao osso, há uma economia de palavras que é extraordinária. Talvez esses sejam os autores me mais me influenciaram, quer no estilo de escrita, quer na forma de conduzir a narrativa.

No entanto, existe uma qualidade que considero ser verdadeiramente minha, do meu trabalho, da minha escrita, que é a capacidade de associar ideias que, aparentemente não têm nada a ver e, a partir daí, despertar no leitor aquela sensação: ‘olha que interessante, nunca tinha pensado nisso’. Um dos elogios que mais recebo dos leitores e que, confesso gosto de ouvir, é: ‘nunca me tinha acontecido ler um livro de uma só vez’. Essa capacidade de prender o leitor, sem grandes efabulações, se calhar, aprendi com esses autores que referenciei. Também houve outro escritor importante para mim, ainda antes de começar a publicar livros, Italo Calvino. O que mais gostei nele e tentei reproduzir, foi a forma como explica ideias muito complicadas de uma maneira muito simples. Vê-se que há ali um trabalho extraordinário. Calvino devia ser uma daquelas mentes que andava por sítios onde nunca ninguém se lembrou de andar, mas, depois, quando passava ao papel, voltava à terra. Tinha a capacidade extraordinária de usar a linguagem apropriada, certeira para situações um bocadinho complicadas. Sempre que tenho uma coisa mais complicada para dizer, tento fazê-lo com o mínimo de palavras e o máximo de lucidez.

Estas referências literárias foram importantes, quando comecei a escrever livros, porque quando escrevia crónicas nunca tinha estas preocupações. Aliás, nos anos 90, o que escrevia nem eram bem crónicas. Crónica será aquilo que faço hoje, para a Visão, onde, sob um título genérico, escrevo sobre o que quero. Outra coisa, era o que fazia nessa época, em que o tema tinha de ser discutido. Por exemplo, chegava à redacção e dizia: “estive em Nova Inglaterra e visitei uma seita extinta que se chama os shakers e tudo o que fizeram é monumento nacional”. ‘Isso interessa-nos’. Ia para casa escrever sobre shakers, não sobre algo de que me lembrava relacionado com o surf, ao ver o trenó utilizado por eles, ia escrever sobre os shakers, ponto. É nesse sentido que digo que não eram crónicas, eram reportagens. Não tinha, nem amplitude, nem liberdade para estar a pensar num estilo.

A primeira vez que eu submeti uma crónica ao Miguel Sousa Tavares, era um texto muito pessoal sobre a minha viagem ao México, onde escrevia sobre as coisas que me tinham acontecido: que tinha dormido no autocarro, que tinha apanhado uma diarreia, que conheci não sei quem que me queria vender cogumelos mágicos. Ele mandou-me a famosa carta de resposta do Miguel Sousa Tavares a desancar, porque o jornalismo é para servir o leitor e não a si próprio. Durante dez anos segui essa máxima: escrever coisas para servir o leitor.

Quando é que se deu o Grito do Ipiranga?

Quando surgiu a ideia de fazer a viagem de volta ao mundo. Aí percebi que o paradigma tinha mudado. Eu ia fazer uma coisa única em Portugal, no jornalismo, e percebi que as pessoas não queriam descrições de monumentos, queriam saber o que é que se estava a passar comigo. Isso ficou claro ao fim de algumas semanas de publicação, quando comecei a receber notificações, o feedback do Expresso, dos meus Pais, dos meus amigos e me consciencializei que o país andava doido a ler o que escrevia, que toda a gente comentava, que o Expresso tinha aumentado as vendas por causa da viagem. A mensagem era muito clara, o grande interesse é contar o que se está a passar contigo. Foi o tal Grito do Ipiranga, que permitiu que eu começasse a escrever sobre viagens de uma forma literária e não jornalística.

A primeira viagem foi ao México, a partir daí percorreste milhões de quilómetros e conheceste milhares de locais. Qual foi a viagem que mais te preencheu?

Em relação à forma como elas nos podem bater, as viagens, é preciso que eu conte uma história. Com sete anos, entrei para os escuteiros e fui acampar para Cantanhede. É preciso entender o que isso significou para um garoto de sete anos, num Portugal muito fechado e onde os miúdos tinham muito poucas experiências. O meu filho tem sete anos e parece difícil que alguma coisa o entusiasme. Não porque seja um miúdo presunçoso, mas porque, hoje, os miúdos têm imensas solicitações, há muita coisa a acontecer, de 15 em 15 dias um deles faz anos, lá vão eles para os insufláveis e para a equitação e para o parque aventura. A nossa vida era muito mais plana, mais básica. Com sete anos fiz o primeiro acampamento em Cantanhede, onde aconteceu o episódio do maluco que apareceu com uma faca de barrar manteiga. Nós achámos aquilo o máximo e subimos às árvores a rir e a chorar. Isso foi muito intenso para mim, foi a minha primeira viagem e marcou-me muito mais do que ir ao Afeganistão com 36 anos. Com os escuteiros, até aos 14 anos, cheguei a ter 100 noites de campo, o que significa que durante esses anos não falhei um acampamento. Depois, com o surf comecei a ter emoções muito fortes, nas primeiras viagens. Vale a pena mencioná-las: com 16 anos fui com um amigo da Figueira para Biarritz, depois, já no registo das viagens solitárias, fui para os Açores, depois, a viagem ao México, a primeira paga profissionalmente. Por isso, para a pergunta que me fizeste, não consigo ter uma resposta única. É óbvio que a viagem de 19 meses de volta ao mundo sem aviões, foi algo que ficará para sempre na minha memória, até porque me transformou numa figura pública. Toda a gente se recorda de mim por causa dessa viagem e pelas que fiz para a RTP, que também chamaram a atenção de muita gente. Não consigo ser ingrato, por isso tenho de reconhecer que a viagem da volta ao mundo mudou a minha vida, deu-me aquilo que sou hoje, foi, talvez, a mais importante da minha vida.

Agora, em termos de achievement, de realização pessoal, no sentido de conseguir completar uma viagem e ter sérias dúvidas se isso seria repetível, quer por mim, quer por outra pessoa, foi a travessia do Continente Africano a pé, por terra, partindo da Cidade do Cabo, África acima. Esses nove meses a levar chapadas quando atravessava as fronteiras por ser branco, a dormir na berma da estrada porque o camião que me tinha dado boleia não tinha faróis, a viver a incerteza dos vistos, a ausência de guias de viagem, tateando, perguntando às pessoas que diziam aquilo que achavam que eu queria ouvir, constituíram a viagem mais difícil que já fiz.

Depois a Viagem do Magalhães, porque me obrigou a entrar em contacto com um mundo completamente diferente. De repente, pensas: não posso estar o resto da vida a viver na berma da estrada, tenho de dar um passo em frente. Daí resultou a descoberta da possibilidade de viajar no tempo, de voltar 500 anos atrás, de escrever um livro que relata duas viagens paralelas, sendo que, numa delas, a viagem histórica, és obrigado a ter contacto com académicos, professores universitários que te reconhecem autoridade intelectual para falarem contigo e isso foi muito gratificante. No final, resultou num bom livro e num bom documentário. Essa foi uma das viagens que me preencheu o ego.

A descoberta da figura do Santo António sob uma perspectiva laica. Fartei-me de pesquisar sobre Santo António e não encontrei uma única abordagem laica feita por um agnóstico, por alguém que olha para Santo António e pensa “este homem viveu num período da história extraordinário, mas tudo o que se diz sobre ele é sob o olhar dos crentes, sobre milagres”. Por isso decidi fazer uma abordagem de investigação científica e foi muito gratificante.

Nem te vou revelar o que penso que será a minha próxima grande viagem, porque acho que só a vou poder concretizar daqui a dois anos. É, uma vez mais, um tema de uma originalidade brutal, por isso não vou falar dele.

Durante essas viagens, quais foram os momentos mais extraordinários que viveste?

Imensos! Mas, esses sim, consigo hierarquizar, fazer um top five. Desde logo, as travessias oceânicas em cargueiro durante a viagem da volta ao mundo, quando tive de apanhar quatro vezes cargueiros, uma para atravessar o Atlântico, outra para atravessar do Pacífico para a Oceânia, a terceira da Oceânia para a China e a quarta de Jacata para Bombaim no Oceano Índico. Outra grande emoção, outro grande momento, foram os cinco, seis dias de trekking de sobrevivência no fish river canyon, na Namíbia. Realmente, é um sítio onde não vai ninguém, a que só se tem acesso fazendo trekking e em sobrevivência, porque não há lá nada em baixo, não há postos de abrigo, não há comidinha (risos). A ida ao Afeganistão, que continua off limits, mas é um país muito bonito em termos de paisagem e património. Chegar ao limite oriental do Estreito de Magalhães, onde Fernão de Magalhães percebeu que tinha vencido a sua aposta, foi outro dos momentos marcantes. Lembro-me que estavam dois graus negativos no ar, com vento, e metendo a mão na água do estreito, a temperatura era de cinco graus. Então, fiz essa brincadeira, deixar a mão ao ar livre durante alguns segundos e depois meter no mar a cinco graus, parecia que queimava. Algo mais banal, mas que me marcou muito, foi ter ido a Bagan, na Birmânia (actual Myanmar), país que esteve fechado durante muitos anos aos turistas. Quando cheguei a Bagan, que é um sítio arqueológico extraordinário, uma planície abandonada com 4000 templos a sair do meio da planície, não estava à espera de encontrar aquilo, por isso, quando cheguei, subi ao primeiro templo e olhei em minha volta e foi um momento muito forte.

Regressemos à tua praia, ao surf. Qual foi a onda que mais curtiste apanhar?

Eu já estive em ondas muito boas e já vi muitas a funcionar muito bem, mas o dia em que talvez tudo se tenha conjugado, em que todos os astros estavam alinhados e eu no máximo das minhas capacidades, em que as ondas parecia que vinham ter comigo e a luz e temperatura da água estavam perfeitas, foi em Arugam, no Sri Lanka.

É óbvio que a Figueira, feitas as contas, talvez seja o local onde tenho apanha- do as melhores ondas ao longo da vida e onde desfruto melhor das ondas boas, porque sou daqui, tenho livre acesso, não tenho de passar pela peneira dos locals, além do meu surf se adaptar melhor aqui, por isso, a Figueira da Foz, concretamente Buarcos, será sempre o lugar onde fiz as melhores ondas.

Resumindo, houve um dia luminoso, onde todos os astros se alinharam, em Arugam Bay, que coincidiu com o último dia da minha viagem de volta ao mundo a fazer surf, “doze meses, doze ondas”, que realizei quando fiz quarenta anos, esse momento constitui o apogeu, a maneira perfeita de encerrar um ano à volta do mundo só para fazer surf.

O que é que mudou no mundo das viagens desde que começaste a viajar?

Mudou tudo. As vendas dos bilhetes de avião, a forma de reservar hotéis, a informação. Chego a ter pena das pessoas que começam agora a viajar, porque nunca mais poderão ter o sentimento de descoberta, de surpresa, de exultação pela conquista da viagem. Hoje já não há conquista, é o contrário, tens de te defender do excesso de solicitações e ofertas, para que consigas perceber exactamente o que queres. É incrível, vais ao Google para saber a data em que os portugueses chegaram a Bangkok, escreves Bangkok e passado um segundo está o booking.com a oferecer-te hotéis. Não queres viajar e és obrigado a pensar em viajar, ou seja, há uma falta de privacidade no teu sonho de viagem. São tantas as ferramentas que te impõe hoje, o Google Earth, o Street View, que quando sais de um aeroporto já não precisas de perguntar onde estão os autocarros para o centro da cidade, porque já consultaste isso online.

Há tempos recebi um email, na sequência da viagem à Argélia, de um tipo que queria dar a volta ao Mediterrâneo em dorso de cavalo. O que é que eu lhe tinha para dizer? Nada. Não faço a mínima ideia como se alimenta um cavalo. As pessoas estão tão desesperadas para fazer alguma coisa que não seja imposta, que já estão dispostas a quase tudo. Há dias ligaram da Visão para um depoimento sobre turismo macabro, porque parece que as pessoas já não sabem o que fazer para tornar as viagens interessantes, então vão ver Chernobyl, locais de massacres, vão fazer selfies em Auschwitz, pagam para ir para palcos de guerra fazer turismo. Mas, apesar de tudo, apesar da banalização, é sempre bom viajar, continua a ser melhor viajar do que não viajar.

O que mudou em ti?

Acho que mudou tudo. Há coisas que não mudam, claro. A índole, aquilo que faz parte da tua maneira de ser. O facto de teres um sorriso pronto, mesmo na adversidade.

Isso é teu, ou é português?

Não, não é nada português. Portugal é uma construção, não é uma constatação. A ideia de que somos todos iguais é uma construção que permitiu criar uma espécie de identidade nacional que definia que os portugueses eram assim, ou assado. Não são nada. São mal-educados, a última coisa que te dão é um sorriso. Vim agora de Itália e em cada sítio em que entras, ainda não meteste o pé na porta e já estás a ouvir ‘bom dia, em que posso ser útil?’. Aqui, entras num café e para tomar uma bica e quase tens de pedir por favor.

Mas regressando à pergunta, há coisas que não mudaram, que fazem parte da índole.

Um certo altruísmo, no sentido em que se vejo alguém a precisar de ajuda, não hesito em ajudar. Por exemplo, há uns anos atrás, encontrei uns americanos num comboio nocturno de Budapeste para Veneza, não sabiam que não podiam pagar com cartão e o revisor da Croácia ou da Hungria exigiu que eles pagassem ou teriam de descer do comboio, eu percebi que eles estavam a ser sinceros e como tinha liras italianas, paguei-lhes o bilhete e dei-lhes o contacto para me fazerem uma transferência bancária. Quando chegámos a Veneza ouvi gritar o meu nome, eram eles que vinham atrás de mim para que os acompanhasse a uma caixa multibanco para me pagarem. Muitos anos depois, para aí há uns sete anos, emprestei dinheiro a um venezuelano a quem tinham roubado a carteira e não tinha dinheiro para o regresso e passado três dias tinha-me depositado. Por isso, a índole não mudou. No resto, sinto que mudei muito. Envelheci (risos). Uma pessoa muda mui- to quando envelhece. Tenho 50 anos e as coisas que faço para um tipo de 50 anos, fazem sentir-me velho. Não me sinto velho a subir as escadas ou a ir comprar pão, mas sinto-me velho a fazer surf nas ondas de Buarcos, sinto que já não é a mesma coisa, assim como, quando tenho uma noite mal dormida, nomeadamente com o jet lag, ou quando tenho mesmo de viajar de noite, nesses momentos percebo que o tempo está a passar por mim e que tenho necessidade de ajustar a viagem com ‘V’ grande à idade que vou tendo.

 

 

Por João Moreira

Fotografia: Arquivo pessoal Gonçalo Cadilhe

 

 

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