Fernando Aramburu

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Já vai para alguns anos que não sobe a pé até Polloe. Poder até podia, mas cansa‐se. E não é que se importe por se cansar, mas para quê, vamos lá ver, para quê?
Além disso, consoante os dias, dão‐lhe assim uma espécie de picadelas na barriga. Então o que Bittori faz é apanhar o 9, que a deixa a poucos passos da entrada do cemitério, e no fim da visita desce a pé até à cidade. É que descer já é outra coisa. Apeou‐se atrás de uma senhora, eram elas as duas únicas passageiras. Sexta‐feira, tranquilidade, bom tempo. E leu no arco da entrada: em breve se dirá de vós, o que costuma agora dizer-se de nós: morreram!! A mim não me impressionam assim com frasezinhas fúnebres. Pó sideral (tinha ouvido aquilo na televisão), é o que somos, a respirar ou a criar malvas. E embora detestasse a antipática inscrição, era incapaz de entrar no cemitério sem parar para a ler.

Pois é, menina, podias ter deixado o casaco em casa. Estava a mais. Tinha‐o posto só para vestir de preto. Andou de luto durante o primeiro ano; depois, os filhos insistiram para que fizesse uma vida normal. Vida normal? Esses dois ingénuos não fazem ideia do que falam. Desejosa de que a deixassem tranquila, seguiu o conselho. Mas isso não impede que lhe pareça uma falta de respeito caminhar entre os mortos vestida às cores. Por isso, abriu o roupeiro à primeira hora da manhã, procurou uma peça de roupa preta que lhe tapasse as outras de diferentes tons de azul, viu o casaco e vestiu‐o, mesmo sabendo que ia passar calor.

O Txato partilha a sepultura com os seus avós maternos e uma tia. A sepultura, ao lado de um caminho com uma inclinação suave, faz uma fila com outras semelhantes.
Na lápide figuram o nome e os apelidos do defunto, a sua data de nascimento e a do dia em que o mataram. A alcunha, não.
Nos dias anteriores ao enterro, uns familiares de Azpeitia aconselharam Bittori a abster‐se de pôr referências na lápide, emblemas ou sinais que identifcassem o Txato como vítima da ETA. Assim evitaria problemas.
Ela protestou:
– Ouve, já o mataram uma vez. Não penso que voltem a matá‐ ‐lo.
E não é que tivesse passado pela cabeça de Bittori mandar gravar na lápide uma explicação sobre o falecimento do marido; mas basta quererem dissuadi‐la de uma coisa para que se empe‐ nhe em pô‐la em prática.
Xabier deu razão aos parentes. E na lápide só foram gravados o nome e as datas. Nerea, por telefone, de Saragoça, teve a ousa‐ dia de propor que falseassem a segunda. Espanto:
como?
– Lembrei‐me de que na sepultura podia fcar a data anterior ou a posterior à do
atentado.
Xabier encolheu os ombros. Bittori disse que nem pensar nisso.
Passados uns anos, quando pintalgaram a lápide de Gregorio Ordóñez, que jaz a uns cem metros da sepultura do Txato, Nerea – que inoportuna! – trouxe à conversa


No primeiro ano, Bittori colocou quatro vasos sobre a pedra. Cuidava deles regularmente. Ficavam bonitos. Depois esteve um tempo sem subir ao cemitério. As plantas secaram‐se‐lhe. As seguintes duraram até à primeira geada. Comprou um vaso de grandes dimensões. Xabier carregou com ele num carro de mão. Os dois plantaram lá dentro um pequeno arbusto de buxo. Uma manhã, apareceu virado, com o vaso partido, parte da terra espalhada sobre a pedra. Desde então não há adornos em cima da sepultura do Txato.
– Falo como me apetecer e ninguém me vai impedir, e tu menos ainda. Se eu estou a brincar? Já não sou como quando tu eras vivo. Fiquei má. Bom, má não. Fria, distante. Se ressuscitas‐ ses, não me reconhecias. E não penses que a tua flha querida, a tua preferida, não tem muito a ver com esta minha mudança. Põe‐me os nervos em pé.

Tal como quando era pequena. Com a tua bênção, claro. Porque sempre a defendeste. E assim deixa‐ vas‐me sem autoridade e nunca aprendeu a respeitar‐me.
Havia um espaço de areia três ou quatro sepulturas mais acima, junto ao caminho asfaltado. E Bittori ficou a olhar para um casal de pardais que acabava de poisar naquele sítio. Com as asas abertas, os passarinhos davam um ao outro um banho de areia.
– A outra coisa que eu queria dizer‐te é que o grupo decidiu deixar de matar.
Ainda não se sabe se o anúncio é a sério ou se se trata de um truque para ganhar tempo e rearmar‐se. Matem ou não, a ti já pouco te adiantará. E não penses que a mim adiantará muito mais. Tenho uma grande necessidade de saber. Sempre a tive. E não me vão deter. Ninguém me vai deter. Nem os filhos. Se é que se apercebem disso. Porque eu não vou dizer‐lhes nada. És o único a saber. Não me interrompas. O único que sabe que vou voltar.

Não, à prisão não posso ir. Nem sequer sei em qual é que esse malvado está. Mas eles de certeza que continuam na povoação. E além disso pica‐me muito a curiosidade de ver em que estado é que se encontra a nossa casa. Tu, tem calma, Txato, Txatito, porque Nerea está no estrangeiro e Xabier, como sempre, vive para o seu trabalho. Não vão dar por isso.
Os pardais tinham desaparecido.
– Juro‐te que não exagero. É uma necessidade muito grande de estar finalmente
de bem comigo, de poder sentar‐me e dizer:
muito bem, acabou‐se. O que é que se acabou? Pois, olha, Txato, também preciso de descobrir isso. E a resposta, se é que a há, só pode estar na povoação e por isso é que lá vou, hoje mesmo, à tarde.
Pôs‐se de pé. Dobrou o lenço com cuidado e o quadrado de plástico, e guardou‐os.
– Enfim, já te informei. Tu por aqui ficas.
aquele velho assunto que na realidade já todos tinham esquecido. Com a foto do jornal à vista, para a mãe:
– Vês como era melhor ter o aita um pouco protegido? Olha do que nos livrámos. Então Bittori depositou com força o garfo em cima da mesa e disse que se ia embora.
– Aonde é que vais?
– De repente perdi o apetite.
Saiu de casa da filha, de sobrolho franzido, colérica no andar, e Quique, ao mesmo tempo que acendia um cigarro, pôs os olhos em alvo.

A fila de sepulturas estende‐se em bateria ao lado do caminho. O bom para Bittori é que, como o rebordo sobressai dois palmos do chão, ela pode sentar‐se sem dificuldade em cima da pedra. Claro, se chove, não. E em todo o caso, como a pedra costuma estar fria (e com líquen e com a sujidade inevitável dos anos), ela leva sempre na mala um quadrado de plástico recortado de um saco do supermercado e um lenço do pescoço para usar como almofada. Senta‐se em cima e conta ao Txato o que tiver a contar. Se há gente por perto, fala com ele em pensamento; se não há ninguém, que é o habitual, no tom de quem conversa.
– A filha já está em Londres. Suponho que sim, claro, porque não se deu ao trabalho de me ligar. Ligou‐te a ti? A mim, não. Como na televisão não falaram de nenhum acidente de avião, deduzo que os dois terão chegado a Londres e estarão muito ocupados a ver se salvam o casamento

Excerto do livro “Pátria” de Fernando Aramburu, Edições D.Quixote

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