Eu viajante, ele turista

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No filme “Um Chá no Deserto” (uma infeliz tradução do lindíssimo título The Sheltering Sky) do Bernardo Bertolucci, ao desembarcarem no porto marroquino de Tanger, os personagens da Debra Winger e do John Malkovich indignam-se com o companheiro de viagem que os apelida, aos três, de turistas. Na circunstância ela corrige, “não somos turistas somos viajantes”.

Todos nós, sempre ou algumas vezes, começamos a gostar de nos reconhecer nesta ideia. Eu o viajante, eles os turistas. Somos influenciados pelo cinema, mas também por pensadores e filósofos para quem as viagens são transformadoras do eu, por poetas e romancistas que cantaram viagens, descreveram trajetos, destinos e culturas, ao mesmo tempo expondo as reflecções e emoções que as viagens propiciam. Há quem procure no trajeto ou no destino essa fórmula do viajante que envolve destinos improváveis, insegurança e desconforto. Viajar para países hostis aos estrangeiros, off season para a praia, ao frio e à chuva para destinos urbanos, deliberadamente na penúria dar a volta ao mundo, ou recorrer à boleia de Carregueiros para fazer a circunavegação, são exemplos contemporâneos que nos chegam escritos em livros ou em blog.

Essa ideia de que somos viajantes ou de que, no mínimo, quando no destino, nos comportamos mais como um tipo que vive nesse lugar, do que propriamente como um turista, é-nos apelativa. É a imagem de um residente com algum tempo livre. Pelo menos quando saímos de casa, particularmente para o estrangeiro, saímos a dizer que vamos viajar.

– “Então o que vais fazer estas férias?

– “Vou uns dias à praia e depois vou viajar”.

Depois somos todos turistas.

– “Vou para Miami.”

Nestas férias para Miami, o frete, aposto, é a viagem. Começa logo na ida de carro para o aeroporto. Um frete, ainda que, deste, os que vivem com o aeroporto na cidade, com muita sorte, nada saibam. Isto, a não ser que, nalguma vez, numa viagem de longo curso, tenham, como eu, tido a infeliz ideia de ir apanhar o avião a Madrid e aí sabem exatamente ao que me estou a referir! Bom, depois, pelo menos para os que viajam pouco de avião, sempre há uma excitaçãozinha na tensão de ir comprar os cigarros ao freeshop, embarcar, estar instalado, levantar voo. Objetivo cumprido. É uma excitação natural. Queremos que tudo corra bem e vamos na viagem em que andámos muito tempo a depositar espectativas e a imaginar. Vamos para a festa, que diabo! Já na vinda, nem essa excitação nos resta. Só queremos chegar. No dia a seguir, mais vezes do que não, o primeiro dia de trabalho, refilamos com os autores do Star Trek que nos prometeram o teletransporte e até hoje, nada!

Para a esmagadora maioria das pessoas, ou para a maioria das pessoas nas circunstâncias das suas vidas, a viagem é um obstáculo. As condicionantes impostas pelo feitio ou formação, pelas dificuldades linguísticas, pelo tempo, pelo dinheiro, se viajam sozinhas ou não, com lhos ou não, levam a que o ato da viagem seja apenas um desnecessário desconforto que se tem de vencer para chegar ao destino, ou a sucessivos destinos, conforme se tenham programado as férias. Vamos de avião em vez de comboio. O comboio até era capaz de ser mais cómodo, mas o avião é mais rápido. Não vamos pelas estradas, aquelas que nos permitiriam ver os países ou regiões porque passamos, fazer uma paragem num miradouro ou, talvez, para uma refeição num restaurante da região, e uma dormida num hotel de charme, em vez de um urbano hotel boutique, já no destino. Vamos pela autoestrada “se não nunca mais lá chegamos” e, quando muito, se tivermos fome, “comemos alguma coisa no caminho”.

Pode argumentar-se que não estou a falar de viagens, mas de turismo. Acontece que, na sua esmagadora maioria, as viagens são, no máximo, turismo de massas individual. Individual porque desenhamos as nossas férias e não viajamos em grupo, mas ainda assim turismo de massas, porque os caminhos usados e os lugares para onde vamos são para todos, e são explorados por empresas do setor. Ainda assim, não tenho duvidas, vale a pena ir. A atenção mais alerta para o que é novo, e as proporções desmesuradas que ganham todos os percalços quando se está longe de casa, aproximam-nos do tal viajante. Pode a transformação pessoal ser um objetivo demasiado ambicioso, mas há sempre lugar para o crescimento.

Quanto ao filme, esse, continua com os personagens a explicar que o que caracteriza o viajante é que, ao contrário do turista, parte não sabendo quando regressa, ou mesmo se regressa. Pergunto-me se haverá assim tanta gente a abraçar esta ideia de viagem. É que eu não.

por João Pedro Costa

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