“Tem de se viajar para se descobrir, com os próprios olhos, que o mundo é muito pequeno e que é, portanto, absolutamente necessário fazer um esforço para dignificar a visão até se acabar por ver as coisas em grande. Tem de se viajar para nos darmos conta de que uma paixão, uma ideia, um homem, só são importantes quando resistem a uma projecção no tempo e no espaço. Não há nada como afastarmo-nos um pouco para nos curarmos da psicose da proximidade, da deformação da proximidade, que nos atacou a todos. Tem de se viajar para se aprender – apesar de tudo – a conservar, a aperfeiçoar, a tolerar.”
Josep Pla in Viagem de Autocarro, Edições Tinta da China
Numa edição dedicada às viagens, devo confessar que, no que me diz respeito, a cartografia da imaginação sempre se sobrepôs à cartografia real, talvez porque “a nossa geografia imaginária é infinitamente mais vasta do que a do mundo material”, como escreveu Alberto Manguel. As minhas grandes viagens foram ao País das Maravilhas e à Ilha de Lilliput; ao Centro da Terra e à Ilha Misteriosa; a Anastásia e à Cidade das Esmeraldas de Oz; e, porque não dizê-lo, ao Paraíso e à Ilha da Utopia. Os lugares imaginários, onde a diversidade e a riqueza são espantosas, sempre me fascinaram e continuam a fascinar.
Por isso, mesmo nas viagens reais, aquelas em que temos de arcar com o peso das bagagens e com a angústia dos preparativos, o que sempre me encantou foi a possibilidade de construir efabulações a partir da realidade. Das ruas, das casas, dos jardins, das estórias, dos cheiros, das gentes. Durante anos, fui enchendo pequenos cadernos com notas sobre lugares que em quase nada correspondiam aos verdadeiros, ou, usando a expressão com que Jean Cocteau definiu o surrealismo, porventura “mais verdadeiros que os verdadeiros.” Dessas notas, que durante anos andaram perdidas dentro de caixotes por sótãos e garagens, sobressai um mapa do mundo modificado pela minha imaginação, unindo países distantes e separando vizinhos, erguendo bibliotecas em locais inóspitos, varrendo de verde planícies de betão e, sobretudo, misturando gentes.
Hoje, talvez porque com a idade vem uma responsabilidade que condiciona a aventura e um angustiante desconforto em relação à separação prolongada de tudo o que amamos, dou por mim a viajar cada vez menos. No entanto, a contrario sensu, nunca me foi tão gratificante fazê-lo. Nestas viagens curtas, quase sempre fugindo ao incómodo de pernoitar fora de casa, tenho readquirido o gosto pelos longos silêncios partilhados, pelas deambulações solitárias por centros de cidades que já não reconheço, pela descoberta de pequenos segredos escondidos em becos e ruelas desconhecidas, por improváveis conversas com estranhos. Afinal de contas, como diz Alberto Manguel em Dicionário dos Lugares Imaginários : “não serão todas as nossas viagens, reais ou imaginárias, uma preparação para esse país que se situa ‘do outro lado do rio’: o país prestigioso, há muito esperado”?
É, pois, de viagens que fala esta edição da Bica. Das viagens que fazemos ao interior de nós mesmos, de que nos escrevem o sacerdote jesuíta Paulo Duarte e o André Serpa Soares; das viagens que nos marcam para sempre, como a que relata, de forma extraordinária, o Professor Raimundo Mendes da Silva, a propósito de umas aulas sobre património que foi ministrar a Nampula, Moçambique; das viagens de reencontro com a nossa identidade, como a que o Luiz Garcia, catarinense de nascimento, fez ao interior de Trás-os-Montes; da caminhada solitária que o escritor Afonso Reis Cabral decidiu empreender pela EN2; da viagem pela consciência que nos desafia a fazer a Vanessa Pires de Almeida.
Numa conversa inolvidável no B’ART, na Murtinheira, Gonçalo Cadilhe, o andarilho profissional que, com as suas crónicas, revolucionou a percepção que os portugueses tinham das viagens, contou-nos as estórias por trás de cada uma dessas epopeias, e revelou-nos a melhor onda que surfou.
O Professor Salvato Teles de Menezes transportou-nos numa viagem inesperada pela história do cinema e da literatura norte-americana, durante uma entrevista a propósito do singular trabalho cultural que a Fundação D. Luís I está a desenvolver em Cascais, e, no âmbito do qual, conversámos, ainda, com o escritor Jonathan Coe, que se encontra na Cidadela, em residência literária, a propósito do seu recente livro, Middle England, e recolhemos, em exclusivo para a Bica, os depoimentos de Olivier Rolin e Michael Cunningham.
Esperemos que gostem desta viagem.
All aboard!