Diário de Bordo – Águas de Março

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Nunca se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra de novo, já mudaram as suas águas, assim como o próprio ser se modificou.

Heráclito

 

Ontem foi a primeira vez que comemorei o Dia Mundial do Teatro. Rodeada de tantos e tão bons parceiros, acendendo o rastilho de uma nova época que,  espero, permaneça em combustão.

Tal como foi a primeira vez que comemorei o Dia Mundial da Poesia, na semana passada, lançando a primeira edição do Consultório Literário, um festival telefónico que começou no dia do Pai com o Dr Changuito, da Livraria Poesia Incompleta, e que não sabemos por quanto tempo durará nem com que regularidade, o curso destes novos rios o dirá.

Os dias oficiais de comemoração sempre me incomodaram, como se denunciassem a falta que o mundo sente daquilo que precisamente celebra. O dia da mulher, o dia do livro, ou, mais recentemente, o dia da língua portuguesa. Os dias de comemoração propõem abrir uma excepção contra uma normalidade inexistente mas instituída, ou não fosse viver um verbo em permanente gerúndio, alimentando uma contínua transformação. Talvez por isto sempre tenha respondido a muitos rituais ou festividades com um desprendido lugar comum: “o natal é quando um ser humano quiser”.

Vinda de uma família multi-cultural, pluri-política e trans-geográfica, a ceia de 24 de dezembro foi sempre sinónimo de encontro marcado com o debate apocalítpico à mesa, e ao ritmo de três pratos principais (ou não fosse o quorum em relação ao repasto tradicional também ele tarefa impossível).

Celebrar um aniversário foi sempre matéria propensa aos maiores mal-entendidos. Troco-me com regularidade nas agendas, parabenizo com frequência casais que já não se amam, amigos que há muito esqueceram a idade que têm, não me recordo nunca daquelas datas que, sei, partirão corações àqueles que por elas aguardam para celebrar comigo.

Eis se não quando, e num certo mês de março de 2020, todas as celebrações passaram a ter um sabor redobrado a resistência e radicalidade.

Foi nesse março que celebrei a minha entrada num novo ofício: a direcção artística do Teatro Viriato em Viseu.  Bom, ainda se chamava fevereiro, já era março. Era um dia 29 de um mês que só tem 28 dias. Fui à estreia de Madalena, um espectáculo delicado de Sara de Castro sobre o luto, com a participação de um coro de vozes de Viseu, a dramaturgia de Ana Pais e de actrizes como Crista Alfaiate, Paula Só ou Ana Brandão. No final do espectáculo, descalcei-me, sentei-me no chão do palco e juntei-me a Paula Garcia e a todos os artistas. Nesse dia fomos as duas directoras do teatro, vivemos o fim e o princípio de um ciclo juntas. Fomos o mesmo tempo, o mesmo caminho, o passado, o presente e o futuro de um projecto com duas décadas. Sem cerimónia, sem flores, mas com a melhor das pompas e circunstâncias para quem veste a camisola desta profissão: aplaudindo uma estreia comovente.

Foi nesse março, a 12, que troquei as voltas à tradição familiar de jantar fora às sextas (tradição que raramente cumpro) e fui numa quinta até ao café do bairro com Z.. Estava vazio. Pressentia-se o que aí vinha. Já tomávamos as devidas precauções, mas no ar sentia-se apenas a calma que se instala antes de um furacão. A Z. comeu o prato do dia, acompanhado de um sumo que nunca temos no frigorífico. Eu pedi uma sopa e presenteei-me com um interdito Rioja tinto, sugestão da casa. Após dias intensos de diálogo com as entidades competentes, com os artistas, com a equipa e com os especialistas, acabava de fechar as portas de um Teatro que nunca abri. Um comunicado saía para todos os órgãos de comunicação (dita social) enquanto eu consultava a ementa. Para quem nunca programou, como eu, este foi, acreditem, um desafio surreal. E para quem não dormia há vários dias, assentava como uma luva um intervalo preenchido com aquela normalidade que não existe, que nunca se teve, nem alguma vez se acarinhou. O prato da Z. veio para a mesa e era gigante, acompanhado de uma dose extra de batatas fritas. O tamanho do meu copo, servido até cá acima, desafiava todos os códigos da etiqueta e da estratégia de lucro de qualquer estabelecimento de restauração. A Z. arregalou os olhos, eu olhei à volta. Confirmámos: só na nossa mesa mudavam as proporções e as medidas. Seria ilusão de óptica ou preferência do chefe atrás do balcão, que me sorria?

Nessa mesma noite, a primeira ministra belga e o primeiro ministro português anunciaram em simultâneo o fim das aulas até à páscoa. Na Bélgica, anunciaram também o fecho de todos os lugares públicos, incluindo teatros, cafés e restaurantes. E o resto dos dias que se seguiram é o que todos vivemos, uma vida sem cafés, sem foyers, sem ruas. Tempos de excepção a uma normalidade que nunca a foi, e que agora se tornou visível.

Na semana seguinte, celebrei o meu nascimento em clausura no restaurante Feliz Aniversário, idealizado e montado com rigor por Miss Z., entre a sala e a cozinha, com a ajuda de dois estendais e três cobertores. O jantar pagava-se em b’s (beijinhos) e no final dava direito a um voucher de quality time de filha para mãe para usufruir a qualquer ora (sem h).

Esta quinta feira que passou, habituada já a este ritmo frenético de um excepcional estado de normalidade em quarentena, ocorreu-me: Amanhã é o Dia Mundial do Teatro!

Estamos com um espectáculo em cartaz, é certo, o Consultório Pediátrico para todas as Idades do Dr. Bruaá, e essa foi, talvez, uma das poucas estreias no país que não ocorreu online (apesar de passar por uma linha), mas ainda assim, fazia falta algo mais para assinalar esta data.

O edifício do Teatro está fechado mas nós continuamos aqui, a exercitar uma programação à distância, pelo telefone, pelo correio, à janela, através de todas as redes sociais possíveis, e não apenas as digitais. Se a montanha não pode ir ao teatro, deslocar-se-á o teatro à montanha, declarámos há pouco mais de 10 dias no Teatro Viriato, baptizando assim uma nova programação.

Os espectáculos não podem estrear em palco, mas podem estrear noutro lado qualquer. Podem e estão a ser concebidos, a ser escritos, a ser pensados e a ser ensaiados em casas cheias de gente, mesmo que da rua pareça que não há ninguém.

Do outro lado, os espectadores, também fechados em casa, continuam a estar e a ser, a viver o seu dia-a-dia, a executar o seu trabalho, com as suas angústias, as suas misérias, os seus aniversários, as suas mortes, as suas epifanias.

Um terço dos seres humanos no planeta encontra-se em quarentena. Um terço! O mundo lá fora mudou abruptamente sem garantias nenhumas de um regresso a um busynness as usual (e será que o queremos de volta?). E nós cá estamos, à escuta, atentos, a querer reagir, a querer acontecer, a querer fazer, tudo verbos que se dão muito bem com o gerúndio da vida, mesmo quando esta acontece à porta fechada.

De assalto, escrevi à Maria do Céu Guerra e ao Rui Zink, dois mestres que me foram adoptando ao longo dos tempos, oferecendo-me casa quando não a tinha, partilhando ideias quando me baralhava. Perguntei-lhes: o que gostavam mais de fazer quando as portas do Teatro voltarem a abrir?

Passei o dia a fazer esta pergunta a todos os que se cruzavam no meu caminho telefónico, emailico, social. Perguntei à minha equipa. Perguntei aos artistas associados do Teatro Viriato. Aos artistas residentes, aos artistas com quem habitualmente faço as minhas criações, àqueles que estão intimamente ligados ao Viriato, ao seu público habitual, ao público da nossa Nova Agenda criada quase em tempo real, de nariz colado à nuca destes tempos.

O dia passou-se entre dilemas sem resposta, desabafos sinceros, lamentos desenfreados, encostos ombro a ombro, confissões múltiplas, e entre tantos outros afazeres que uma casa como o Viriato exige. Tal como sempre me acontece em qualquer estreia, chegou aquele momento do dia em que admiti: Por que estou eu aqui a incomodar tanta gente com isto? Já não basta o desânimo? A falta de esperança? O reajustamento ao tele-trabalho, a aflição dos amigos que trabalham em hospitais, em supermercados, na polícia, nas fronteiras? Porque insistes que o Teatro tem de ser uma farmácia e um laboratório da alma? Um lugar que se deve manter aberto para dar assistência a todo o tipo de maleitas morais, psicológicas, internas, sociais, políticas, cósmicas? Porque queres tanto fazer parte do teu tempo, quando te sentes sempre tão fora dele? Fora dessa maldita normalidade que não encontras em ninguém nem em nenhum lugar?

É quase meia noite e na minha caixa de correio cai uma mensagem. Um vídeo de Rui Zink, a lembrar que teatro é acção, e que o mais importante não é o aplauso final, mas o abraço. Logo a seguir, Maria do Céu Guerra envia um áudio acabadinho de gravar. Lia “Socorro”, de Ariane Mnouchkine. Comovi-me. Logo em seguida outra mensagem, e outra, e outra, e outra. As declarações multiplicaram-se durante a sexta feira e iam sendo publicadas quase de imediato nas nossas plataformas de divulgação. Cedo os comunicados se tornaram em promessas, em sentidos manifestos, em pequenas performances. Sem querer, ou porque queríamos todos muito, esboçámos um futuro comum, como só a arte sabe fazer no pior dos cenários, fintando a resignação e o desespero.

Quem acompanhou o nosso Dia Mundial do Teatro sabe do que falo, quem for mais curioso pode espreitar o site do Teatro Viriato, quem quiser pode juntar-se: com o seu manifesto, a sua resposta, a sua performance. O dia 27 foi só o primeiro de um longo início a percorrer.

***

Para o ano, ou já para o mês que vem, vou celebrar todos estes dias de março.

O dia da minha entrada no Viriato (que nos anos não bissextos serão dois, o último de fevereiro e o primeiro de março).

O dia do copo bem servido, não importa em que dia, nem mesmo em que mês, o que importa é cumprir a rotina dos dias úteis com a necessária inutilidade – ou a utilidade in – de sair e jantar fora sem aparente motivo a não ser a vontade de estar.

O dia de um aniversário, o meu ou o de alguém, com conta aberta num restaurante onde se pague em beijoquice.

O dia do pai, porque sei que o vou ver em breve, apesar de ter escolhido ficar a dois mil quilómetros de distância dele, para que a minha filha pudesse estar a dois passos do pai dela.

O dia da poesia, porque o poema é a mãe da acção radical.

E, finalmente, o Dia Mundial do Teatro, porque é o dia em que se comemora o ensaio diário do futuro através da arte. E o futuro começa (Está? É?) aqui.

Para os meus pais

Por Patrícia Portela

(mais informação sobre o Consultório Literário e sua futura programação em www.teatroviriato.com)

(https://www.teatroviriato.com/pt/calendario/dia-mundial-do-teatro-na-montanha/)

 

 

video águas de março Elis Regina e Tom Jobim em 1974

 

 

 

 

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