CONTINUAR, INOVANDO

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A tradição e a modernidade sempre coexistiram na procura de soluções para os vários problemas em análise, num diálogo, mais ou menos comunicante, entre os valores ancestrais do lugar, com os seus costumes, comportamentos, memórias e crenças, e as novas maneiras de pensar e construir o mundo, adequadas ao seu tempo e às suas necessidades.

Num passado ainda não muito distante, dois arquitetos modernos separados pelo Atlântico – Lúcio Costa e Fernando Távora – apresentaram dois ensaios, Documentação Necessária (1937) e O Problema da Casa Portuguesa (1945), onde revelavam a necessidade de uma renovação conceptual, que aliasse a arquitetura moderna, a “única Arquitetura que poderemos fazer sinceramente”, às lições da História, “na medida em que pode resolver problemas do presente e na medida em que se torna um auxiliar e não uma obsessão” (Távora, 1947).

“Um dos princípios fundamentais que amadureceu em Itália, e sobre o qual desejo chamar a atenção do Congresso, foi o de atribuir valor de monumento e de estender as disposições de estudo e de conservação não apenas às obras mais significativas e de maior prestígio, mas também àquelas de importância secundária que, ou pelo seu conjunto de monumento coletivo, ou pela relação com os edifícios mais grandiosos, ou pelo testemunho que nos oferecem da ordinária vida arquitetónica dos diversos períodos, assumem um prevalente interesse ambiental, seja no que diz respeito à arte ou às recordações históricas, seja na função urbanística”.

Gustavo Giovannoni in Conferência Internacional de Atenas sobre o Restauro de Monumentos (1931)

Influenciados pelos tópicos, referentes ao património urbano, introduzidos por solicitação dos delegados italianos ao IV Congresso Internacional da Arquitetura Moderna (CIAM, 1933), pela intervenção de Gustavo Giovannoni na Conferência Internacional de Atenas sobre o Restauro de Monumentos (1931), pela procura de uma identidade nacionalista comum a um Estado Novo, ou, simplesmente, por uma educação de carácter histórico, estes arquitetos, urbanistas e pedagogos não só admitiram e procuraram uma alternativa ao Movimento Moderno que dialogasse com o território como defenderam a importância do edificado corrente, apenas revelada em documentos internacionais a partir da década de ’60.

 

Lúcio Costa, em Documentação Necessária, artigo publicado na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, reconhece a continuidade da linha evolutiva, onde a tradição construtiva e a repetição tipológica, depuradas no tempo, se podem constituir como “material de novas pesquisas, e também para que nós outros, arquitectos modernos, possamos aproveitar a lição da sua experiência de mais de trezentos anos, de outro modo que não esse de lhe estarmos a reproduzir o aspecto já morto” (Costa, 1937: 33).

Contrariamente à adoção artificial de elementos “já sem vida da época colonial” pelo chamado movimento tradicionalista, Lúcio Costa alerta para a necessidade de um estudo aprofundado sobre “os vários sistemas e processos de construção, as diferentes soluções de planta e como variaram de uma região a outra, procurandose em cada caso determinar os motivos – de programa, de ordem técnica e outros – por que se fez desta ou daquela maneira (…)” (Costa, 1937: 34), tradições guardadas e adaptadas com simplicidade e bom senso pelo mestre de obras portuga de 1910.

Este estudo não se deve deter nas casas grandes de fazenda, mas estender-se às “casas menores, de três, quatro, até cinco sacadas, porta de banda e aspecto menos formalizado, mais pequeno-burguês, como essas que ainda se encontram nas velhas cidades mineira (…)”, procurando o sentido intemporal da arquitetura vernacular.

Fiel à “bôa tradição portuguesa de não mentir” (Costa, 1937: 37), Fernando Távora, em O Problema da Casa Portuguesa, reflete sobre a recorrência a uma falsa interpretação da arquitetura antiga para resolver questões atuais, sobre “o emprego sem nexo e sem lógica de algumas das formas dessa mesma Arquitectura”, levado a cabo por apologistas da Casa à Antiga Portuguesa.

Perante os riscos desta atuação, Távora defende que “As casas de hoje terão que nascer de nós, isto é, terão que representar as nossas necessidades, resultar das nossas condições e de toda a série de circunstâncias dentro das quais vivemos, no tempo e no espaço”.

Para isto, propõe um estudo sistémico, alicerçado em três vertentes: do meio português, atentando na relação, presente e histórica, entre o Homem e a Terra; da Arquitetura portuguesa existente, em função do homem de hoje, definindo as condições da sua criação e desenvolvimento, “os modos como os materiais se empregaram e satisfizeram as necessidades do momento”; e da Arquitetura e das possibilidades da construção moderna no mundo, como resposta às novas condições, “para aumentar ao passado algo de presente e algumas possibilidades de futuro, para aqueles para quem viver é criar alguma coisa de novo, não pelo desejo estúpido de ser diferente, mas pela imperiosa determinação da vida que não admite qualquer paragem ou qualquer estagnação sob pena de que a posteridade nos não perdoe”.

Távora sempre procurou usar os fundamentos do Movimento Moderno, não como mais um estilo a experimentar, como na prática pedagógica seguida por Carlos Ramos, mas na expressão de adequação à sua época e aos valores formais e espaciais da paisagem.

A Casa de Ofir (1957-1958) constitui-se, assim, como a síntese do debate da década de ‘50, construindo sobre os pilares da modernidade uma “lógica dominante, uma profunda razão em todas as suas partes, uma íntima e constante força que unifica e prende entre si todas as formas” (Távora, 1947), de firme identidade com o lugar.

Casa de Ofir, de Fernando Távora (Freitas, 2015).

Embora baseando a expressão arquitetónica na tradição e no apuramento da repetição, Lúcio Costa preconizou, entre os anos ’40 e ’60, a singularidade e a originalidade plásticas, de forma a legitimar a brasilidade de uma expressão nacional gerada por autores como Oscar Niemeyer.

Contudo, a sua obra construída distancia-se da expressão de rutura com o contexto da arquitetura moderna brasileira, evidente no Park Hotel São Clemente (1944-1945), onde, condicionado pela paisagem e materiais locais, manifesta o equilíbrio entre soluções modernas e tradicionais.

Park Hotel São Clemente, de Lúcio Costa (Wisnik,2001).

Na urbanística, não esquecendo os diferentes contextos e preexistências, o Plano Piloto de Brasília (1957), de Lúcio Costa, e o Estudo de Renovação Urbana do Barredo (1869), de Fernando Távora, expõem perspetivas muito distantes da relação do Homem com o Habitat.

Obedecendo aos princípios de um novo urbanismo, apresentado na “Carta de Atenas” (1933) – como a dependência da propriedade privada ao interesse coletivo, a padronização das construções, a restrição do tamanho e da densidade da cidade, a concentração da edificação associada a extensas áreas de vegetação, o zonamento funcional e a separação da circulação de veículos e peões, eliminando a rua-corredor – o Plano Piloto de Brasília assumiu o homem como uma máquina biológica, atendendo às suas quatro necessidades básicas: habitar, trabalhar, recrear-se e circular.

Sob esta visão demiúrgica sobre o modo de habitar, Lúcio Costa descurou, porém, os comportamentos culturais que definem a apropriação do espaço.

Ao contrário, no Estudo de Renovação Urbana do Barredo, Fernando Távora seguiu o método de aproximação ao real, lançado por Octávio Lixa Filgueiras, na disciplina de Arquitetura Analítica da Escola Superior de Belas Artes do Porto, dotando a análise da cidade existente “de um cariz sociológico e antropológico para compreender a articulação entre a arquitectura e o homem, a partir da relação entre o público e o privado” (Moniz et al., 2014: 320).

Atento à identidade do lugar, aos valores urbanísticos, arquitetónicos e sociais, o “plano enquadra-se no princípio anteriormente estabelecido de que o Barredo deve continuar-inovando-se, por um processo que na sua origem terá de ser rápido, dinâmico e total. Renovar o Barredo será assim ajudá-lo a despertar da sua letargia e apontar-lhe caminhos novos e florescentes, caminhos de vida e não caminhos de morte como os que actualmente prossegue, integrando-o humana, social e paisagisticamente na vida do Porto; não mais um gueto nem um monte de ruínas, mas um centro vivo e um belo elemento da paisagem urbana” (CMP-ERUB, 1969: 59).

 

Por: Vanessa Pires de Almeida

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