Comunicar ou perecer

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Por que – mais do que nunca – a única espécie que domina a fala tem a urgência de aprender a se comunicar melhor

 

Deus é o criador do caos e da confusão. Se Ele fosse um compulsivo por ordem e clareza, teria logo abortado algumas ideias até hoje controversas, como a dualidade, esse mundo de contrários em que nossos patriarcas foram mergulhados depois de um rápido estágio no Éden perdido, que parecia ser tão idilicamente simples quanto entediante. Vivemos hoje entre polos, transitando entre a fúria e a paz, o amor e o ódio, a inveja e a caridade, a doçura e a barbárie, o feio e o belo, o divino e o mundano. Para piorar, ele não dotou o homem – sua grande masterpiece – de capacidades inatas de comunicação pelo pensamento. Teve essa ideia de deixá-lo assim, primitivo, quase gutural, a depender de palavras para se fazer entender. Os humanos, à semelhança do Pai Criador, não deixaram por menos. Foram pródigos ao criar uma miríade de idiomas. Dissimulados, ainda inventaram uma história segundo a qual o próprio Deus Jeová teria insuflado a confusão de línguas como castigo pela petulância humana de tentar construir uma torre que os levasse mais facilmente ao céu.

Desde esses tempos imemoriais, portanto, o homem convive com a dificuldade de se comunicar, mesmo entre aqueles que comungam a mesma língua. Não apenas porque palavras têm uma limitação intrínseca, pois jamais poderão encarnar todo o sentimento que as provoca. Por isso, não raro o silêncio é mais loquaz que a palavra. É quando a verdade escapa pelos poros e trai o verbo proferido, usado com habitual costume para encobrir o que borbulha na alma. Como esperar que haja comunicação verdadeira quando a palavra se presta para acobertar, ludibriar e falsear o que se movimenta sob a superfície de um semblante? A própria palavra está entregue à dicotomia deste mundo.

Ora é capaz de produzir o artístico e elevar o espírito na prosa de um Cervantes, ora se presta a infundir a mentira, o ódio, o fratricídio, o extermínio do diferente.

Em defesa da palavra, é verdade dizer que ela pode filtrar o pior das intenções humanas. Se você pudesse sentir a acrimônia dos pensamentos do vizinho que você odeia e vice-versa, o desfecho de um encontro fortuito no elevador poderia ser trágico. Todo o sentimento de desafeição fica represado nas palavras, na seca saudação de um “bom dia”. Foi ao pensar nisso que me veio essa constatação de que, para o atual estágio da humanidade, a senciência seria desastrosa nas relações pessoais. A imperfeição humana não consegue conviver com a franqueza dos pensamentos. Casamentos naufragariam rapidamente ao primeiro e despretensioso pensamento de infidelidade do companheiro. A atmosfera de um escritório de trabalho – já habitualmente crivada de intrigas nas fofocas do cafezinho – se transformaria num inferno, com dardos mentais atirados de todos os lados. Igrejas não existiriam. Líderes religiosos sucumbiriam à luz de suas imperfeições, de suas ambições materialistas ou de seus desejos indecorosos, avessos à fé e ao modelo de perfeição que professam. Tudo desnudo e exposto pela apreensão imediata do pensamento.

Nosso drama enquanto espécie é que, para não perecer numa guerra de moucos funcionais – que se ouvem, mas não se entendem -, a humanidade precisa melhorar a comunicação entre suas gentes. Comunicar, como sugere a palavra latina “comunicare”, propõe tornar algo comum, partilhar. Pressupõe haver um campo de intersecção, onde os diferentes dividem o que lhes é comum.

Quando vejo recentemente duas nações beligerantes e com mania de grandeza – como os Estados Unidos e o Irão – trocando grosserias e hostilidades, distingo aí um caso clássico de falta de comunicação. Embora seus governos tenham seus canais diplomáticos de conversação, não é isso a que me refiro. São cúpulas que não se comunicam, porque não buscam esse terreno de convivência e partilhamento. A grande verdade é que comunicar exige o que eu chamaria de uma “predisposição amorosa”. Não existe comunicação quando o outro está mais preocupado em permanecer na trincheira de sua própria verdade, abraçado ferrenhamente ao seu território de certezas e valores. Não está disposto a abrir espaço para explorar a humanidade que faz do outro um semelhante.

Traduzido para a dinâmica das relações pessoais, a mesma disposição é necessária. Pessoas que se antipatizam comunicam-se mal. Para haver comunicação, não basta que se diga algo a alguém. Do outro lado, é preciso haver ouvidos que acolham, uma mente que opere com a premissa de que as diferenças não desfazem nossas semelhanças.

É claro que todo conflito é uma disputa de interesses que acaba por corromper o processo de comunicação. E se interesses sempre existirão, que esperança haverá de que as relações entre pessoas e nações poderão ser pacificadas? O que poderá garantir que os diferentes entrem em diálogo, desarmados e dispostos ao entendimento? A utopia é que os interesses sejam menos estreitos, menos egocentrados; que a criatura humana desenvolva, no frigir de seus padecimentos pessoais e coletivos, uma consciência mais universal, fundada na empatia pelo outro. Essa é a virtude suprema da comunicação. Porque empatizar com o outro é um movimento de encontro. Você está pronto para dialogar quando admite a existência e o valor de outras verdades, mesmo que delas discorde.

Talvez a noção que melhor traduza o espírito propício à comunicação seja a do “ubuntu”, a filosofia de povos da África Subsaariana que propaga uma fraternidade compassiva, aberta ao encontro, sintetizada na expressão “sou o que sou graças ao que somos todos nós”. Está sentada na ideia de uma relação de intrínseca interdependência das pessoas. Ou seja, quanto mais cada um percebe a extensão de sua relação com o coletivo, mais ele se abre ao todo. Da mesma forma, invertidamente, indivíduos ou nações que se isolam, que se desconectam com o todo, desenvolvem uma visão de mundo distorcida. Vivem à sombra de fantasmas e inimigos. Alimentam neuroses e se enclausuram em suas próprias verdades, indispostos ao diálogo, incapazes de uma relação de empatia. Ameaçados, vão preferir o conflito.

Isso nos faz pensar que comunicar não é tão-somente uma faculdade. Nos dias de hoje, quando o mundo se globaliza – apesar de ainda fragmentado -, comunicar-se tornou-se um imperativo existencial. Num passado remoto, num mundo separado por distâncias continentais, as diferenças podiam ser ignoradas, pois o contato rarefeito não dava margem à disputa de interesses. Hoje, num mundo interdependente, as nações enfrentam um dilema nesta bifurcação da história: ou se comunicam sob a bandeira de uma fraternidade transnacional, ou insistem numa experiência chauvinista, de nacionalismo excludente que contraria a condição humana. Ou a humanidade se reconhece espontaneamente como tal, ou terá de repetir-se, escolhendo o trauma dos conflitos e da dizimação para reduzir as resistências e construir um novo consenso, que eleja outra hierarquia de valores, na qual a vida humana – de qualquer humano – seja o princípio primeiro e incondicional, para o qual todas as sociedades finalmente queiram convergir.

Até me permitiria um arroubo de otimismo sobre o futuro se não soubesse que a humanidade ainda parece preferir as tragédias. Ainda vivemos num mundo de moucos que só sabem falar para si mesmos. O nome disso não é comunicação. Isso se chama insânia.

 

Por Luiz Garcia

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