Bica-Um Bairro genuíno no coração de Lisboa

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A antropologia caracteriza-se pelo estudo do homem no seu contexto social e dos diferentes grupos étnicos e sociais que encontramos no nosso mundo.

Com o passar dos anos os focos foram-se alargando e surgiram novos conceitos e novos olhares que nos ajudam a compreender diferentes relações interpessoais. Surge então um ramo na disciplina: Antropologia Urbana. Ul Hannerz, na sua Exploração da cidade (1986: 15, 277-288), enfatiza que a Antropologia Urbana não deve dedicar- se ao estudo de aldeias ou comunidades urbanas, mas a espaços especializados e extensivos no contexto de uma cidade plurifuncional” (Homobono, 2000: 18) e foi precisamente isso a que me dediquei no estudo do Bairro da Bica, no coração da cidade de Lisboa.

Tentei observar as formas e graus de inter-relação existentes, divididos em residência, parentesco, lazer e relações de vizinhança percebendo assim qual a particularidade deste bairro face à vida numa grande cidade, onde nos cruzamos com inúmeros estranhos diariamente e onde a realidade de cada pessoa que não seja do nosso círculo de relações nos é totalmente desconhecida. Comecei por passear pelo bairro e fazer um reconhecimento do terreno, compreender os seus cantos e que ruas envolvem o coração da Bica. Dei-me conta daquilo a que a antropóloga Graça Índias Cordeiro chama de “imediatamente visível” e que nos chama logo a atenção: as escadinhas e o largo grande. O meu conhecimento da Bica resumia-se às incursões ao bairro durante aos santos populares e aos jantares de grupo na Dona Rosa, mas o pretendido neste estudo era que visse para além do casual, que olhasse para o bairro de forma a que cada pessoa e cada rua fossem importantes e me respondessem à pergunta “quem é este “microespaço” lisboeta”?

Os níveis de comunicação que encontramos no bairro variam de local para vizinhança, depois para redes de amizade e, por fim, para redes de parentesco. Assim, percebidas estas dinâmicas, foi preciso participar na vida do bairro – de longe – de forma a começar a aperceber-me como é que a rotina e a dinâmica entre os habitantes se dá na Bica.

Ao longo dos passeios fui-me cruzando com vários residentes que me foram contanto histórias passadas da sua vida ali e como a construíram em função da maneira de se viver neste bairro tão coeso. Apercebo-me que existe uma diferença clara entre passado e presente, onde o passado é sempre melhor. Muitos idosos consideram que as pessoas que agora vivem no bairro já não são mesmo de lá, pois os naturais ou já morreram, ou migraram. No entanto, os mais novos assumem-se como uma nova geração dinamizadora, que está pronta a espelhar as características do local onde vivem para o resto da cidade.

A alegria que se vive no mês de Junho e a simpatia e carinho que recebemos quando vamos para as noites de santos populares revela a união vivida entre todos, bem como a marca enorme e o peso que são as festas de Lisboa na dinâmica do bairro. Os seus habitantes trabalham na sua ornamentação e arraiais durante todo o ano. Esse é um dos principais factores de coesão da Bica. Existe, sem dúvida, um trabalho comum entre jovens e mais velhos de que nos damos conta todos os anos pela tradição mantida na forma de decorar as ruas, aliada a uma inovação notória nas festas, no que diz respeito aos artistas, bem como às músicas que tocam. Se na decoração é a história da Bica que está presente, na música a mão dos mais novos é notória.

Apesar de toda esta dinâmica e empenho, pude verificar que a Bica é um bairro pobre, cujo coração gira em torno das escadinhas e dos seus espaços de convívio – sobretudo cafés – que sobrevivem, na sua maioria, à custa de clientes regulares. No entanto existem espaços que atraem clientela de outras zonas da cidade, e hoje, com a grande afluência turística em Lisboa e com a procura dos lugares “autênticos”, “vintage”, “tradicionais” e “intocados pela passagem da modernização”, o bairro tem vindo a ser alvo de várias visitas por parte de estrangeiros, que descobrem ali um diferente modo de estar no dia-a-dia na cidade.

O meu interesse pela Bica, para além do seu espaço físico, com uma fortíssima raíz popular e genuinamente lisboeta, das suas casas antigas e do seu pulsar de vida, resultou de um texto da antropóloga Graça Índias Ribeiro, que me permitiu olhar para o bairro de forma diferente, com o objetivo de descobrir o coração da Bica.

E que bom foi ver as portas das ruas abertas para os vizinhos; mas por outro lado perceber que o espaço privado das suas casas assim o é. Existem códigos de honra e limites que todos conhecem e não ultrapassam e como tal a vida vai sendo vivida, na ajuda uns dos outros, nos risos das crianças que sobem e descem as escadinhas ou a rua do elevador, nos cafés com os seus clientes habituais, com as suas Associações desportivas, com os inúmeros turistas que fotografam o bairro em todos os seus recantos, mas que passam sem parar. E esquecemo-nos que quando chegamos às ruas superiores estamos na confusão da Calçada do Combro ou lá em baixo no Cais do Sodré, onde a agitação da cidade de Lisboa não tem limites à noite.

É sem dúvida um bairro com uma personalidade vincada, que não me parece que vá perder a sua essência com o passar dos anos e com as mudanças que se vão vivendo em Lisboa com a turistificação. Um bairro que sabe quem é e se quer manter assim, acompanhando os tempos, mas sem perder aquilo que o caracteriza: a amizade entre todos os que lá habitam e a sua rotina genuína de vida.

(Texto baseado em estudo realizado com Matilde Branco)

Por: Mariana Pereira Coutinho

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