Bernardo Cabral – A arte do vinho

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Aos 12 anos já queria ser enólogo, algo natural para quem nasceu numa família de enólogos. Começou na Quinta da Romeira / Companhia das Quintas (1999 – 2004), e teve o seu primeiro grande desafio, como solista, na Casa de Santa Vitória (2004 – 2012, como enólogo principal, sendo, até hoje, enólogo consultor). Foi responsável pelos vinhos da Companhia das Lezírias (2012 – 2019), onde criou o a marca Tyto Alba. Hoje, é consultor de produtores de norte a sul do país e ilhas: Vicentino (Alentejo litoral), Balanches e Herdade da Bombeira (Alentejo – Mértola), Casa de Santa Vitória (Alentejo – Beja), Murgas (Bucelas), Pegos Claros (Palmela), Quinta do Val Moreira (Douro), Arvad (Algarve), Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico (Açores), para além de projectos que ainda não entraram no mercado.

Entrevistar um amigo de uma vida, para falar de vinho e a beber vinho, teria tudo para não dar certo. Com algum esforço e edição posterior, acabámos por conseguir alguma objectividade. Esta foi a entrevista possível, onde falámos dos vinhos e de arte e de como a pintura pode ser uma metáfora para a enologia.

Como começas um novo vinho?

Como nenhum dos projectos onde estou, é meu, tenho a consciência de que trabalho para alguém. Assim, a primeira coisa que faço quando sou desafiado para um projecto – e, às vezes, no meio do processo é preciso voltar a falar nisso – é discutir com os produtores para definir, em conjunto, o que vamos fazer.  As vindimas, actualmente, precisam de um projecto que, além das castas e do terroir, represente o produtor, mesmo quando, às vezes, nem ele sabe exactamente o que quer. Quando sabem o que querem, cruzamos ideias e acertamos o caminho que eles já tinham definido. Quando não têm um caminho definido, apenas têm uma vinha e querem fazer um bom vinho, acabo por ter de ser eu a definir o caminho. Com raras excepções, todas têm um grande amor pelo vinho e uma alma espectacular.

Como consegues gerir, no Pico, a vindima de muitos micro produtores?

A coisa mais importante é que cada um deles trabalha a sua “micro vinha” como se fosse um bonsai. Quase sempre é um second job, em que todos os dias saem dos seus trabalhos e vão trabalhar para a vinha. São vinhas com poucas plantas, sem mecanização, então precisam de ser geridas com muito cuidado. As uvas, lá, valem quatro euros o quilo. Se o vento vem de um lado, eles põem umas pedras a proteger as plantas, que é para elas não abanarem muito e partirem.

Isso vai muito além do vinho de garagem, é um vinho de canto da garagem.

Nunca vi nada parecido com aquilo e acho que não vou ver. É um nível de entrega à viticultura incrível. Em termos qualitativos, tem sido espectacular. Deste ponto de vista, a minha presença entra desde a definição do património vitícola a todo o projecto de produção de uva.

Na parte da viticultura estamos a falar da planta, da videira, até sair a uva.

E as práticas associadas, como a poda e a rega. Não sou eu quem está a definir se terão de pôr herbicidas ou se vão pôr fungicidas, mas defino as estratégias, com acompanhamento e visitas constantes. Não vou a uma adega sem ver primeiro as vinhas.

No fundo isto é a viticultura.

Sim, e trabalho cada vez mais tempo na vinha. Depois, há a parte da adega, onde entra a enologia, que é a vinificação – pegar na uva e transformar em vinho. Mas há, ao longo do ano, todo um trabalho de decidir onde se colocará o vinho, que barricas é que serão usadas ou se não serão usadas, o loteamento, se vou juntar uma casta com outra, juntar diferentes zonas da vinha. Podes ter um vinho só de uma casta, mas com lotes diferentes – uns com estágio em barrica, outros não – ou de vinhas diferentes.

A enologia é, no fundo, fazer um blend?

Vou dar o exemplo da pintura de um quadro. Se não tens boas tintas e não tens uma paleta de cores completa, ou grande, vais ter muita dificuldade em fazer um quadro onde queres pintar uma paisagem o mais representativa possível daquilo que é a realidade. Podemos considerar que a tinta são as uvas. A vinificação será pôr as tintas na paleta e misturar. O rasgo do enólogo, pelo menos do ponto de vista da enologia em que eu acredito, que é uma enologia artística, é colocar expressão no vinho, assim como numa pintura. É preciso ser muito bom pintor para criar emoção. Posso dar um exemplo, quando sugeri que plantássemos Chardonnay no Vicentino, o Ole Martin Sien (dono do Vicentino), disse que ABC (Anything but Chardonnay), excepto em casos muito especiais, e pediu muito cuidado com o que ia sair. Arriscámos, e ele provou o vinho (que só vai sair daqui a uns 2 anos) e quase lhe caíram lágrimas de emoção. Qual a maior recompensa que um enólogo pode ter senão o dono, o produtor, emocionar-se com o vinho que tu, juntamente com uma equipa, fizeste?

Mas o vinho é um produto.

Expliquei a parte da vinificação e a parte da enologia enquanto pintura de um quadro, mas, igualmente importante, é a figura do galerista (produtor). É importante pegar num quadro e conseguir vendê-lo, mostrá-lo, exibi-lo, fazer exposições. No contexto do vinho, esta é a parte do marketing, na qual entro cada vez mais, pois o enólogo também tem esta componente de promoção. O amante de vinho gosta muito de conhecer o criador que está por trás daquele vinho. É por isso que, muitas vezes, os vinhos são assinados pelos enólogos. Acho muito importante que o enólogo seja visto assim, pois tento fazer arte nos “meus” vinhos, mas tenho muita pena que, em alguns casos, não haja a assinatura do produtor, porque eles têm um impacto muito forte.

Isto tem a ver com o tipo de produtor, porque há muitos produtores que são fundos de investimento, que resolvem investir em vinho.

Fujo a sete pés desses. Há quem corra atrás deles (risos).

Depois, tens aquelas pessoas que, ou porque têm uma propriedade, ou porque têm um enorme gosto por vinhos, resolvem querer fazer uma coisa muito específica, com uma imagem muito própria. Se calhar, são as pessoas mais abertas a fazerem coisas fora da caixa?

Enquadro-me cada vez mais nesse tipo de produtores. Nós, ao longo da vida, vamos amadurecendo. Tenho um percurso com um momento importante de cisão: um 2012 que marcou o meu antes e o meu depois, e me pôs em perspectiva muitas coisas que eram para mim basilares e estruturais. Pilares aos quais me agarrava. Depois, percebi que eram pilares com alicerces podres e, portanto, partiram-se facilmente. Percebi que aquilo, de facto, não era o importante, caindo por terra muitas coisas em que acreditava e aparecendo outras. Caiu uma parede que não me deixava ver um outro muito mundo, mais bonito e em que acredito muito mais. Talvez tenha passado a ser ainda mais autêntico, a conseguir exprimir as coisas de uma melhor forma através do vinho, sendo essa uma das minhas formas de expressão dos sentimentos. Parece até um bocado estranho.

Acho que isso também tem um pouco a ver com a arte e aquelas fases em que um artista se pergunta: “quero fazer uma coisa em que acredito, de facto, ou quero fazer alguma coisa que venda?”. Sendo que toda a gente precisa de viver daquilo que faz, portanto, é normal que haja uma componente comercial. Terá sido a altura em que começaste a fazer vinhos para ti, também, sendo que teriam, obviamente, de ser vendidos?

Vou pôr desta forma: eu era resultado do que alguns disseram que eu deveria ser. Portanto, era um vinho diante de uma receita que já estava definida e passei a ser eu próprio. Passei a deixar exprimir muito mais as minhas emoções, soltar cá para fora, ver a vida com outras cores. Mas é isto. São vinhos de emoções, literalmente. A matéria prima é a emoção.

Isto tem muito a ver com a genuinidade, perceber o que tens, que uvas, que possibilidades. Mas já fizeste experiências com castas pouco óbvias e não te restringes a castas portuguesas.

Sim, algumas até erradas. Hoje, estou bem mais focado nas castas portuguesas, mas há algumas erradas que vão lindamente (risos). Mas, isto de que estás a falar, da genuinidade e autenticidade… Nós temos vivido uma valorização do que é autêntico. E com toda razão.

Com a pandemia ainda mais.

Muito mais. Andámos meio perdidos a querer copiar o outro, achámos que o que era vendável era o outro. Já faço vinhos há alguns anos e tenho acompanhado algumas modas, como a de arrancar vinhas com uvas brancas para plantar tintas. Apanhei várias coisas e, uma delas, era a vergonha da casta portuguesa. Diziam que a casta portuguesa não vendia lá fora porque as pessoas até se assustavam com os nomes estranhos. Até que isso mudou, finalmente. É muito gratificante poder fazer vinhos nesta era, em que o mundo quer provar o que Portugal tem de diferente.

Neste momento estás a fazer vinho (quase) em Portugal inteiro.

Quase. Estou no Alentejo – quando eu era miúdo, dizia que queria ser enólogo, mas enólogo no Alentejo, por várias razões, uma delas era o facto de ter família de lá – e gosto muito de ter, hoje, um papel importante dentro da região, com o factor diferenciador espectacular de trabalhar no litoral do Alentejo, onde estou com  o Vicentino, e no interior, com dois projectos de que gosto muito e que estão exactamente na mesma latitude, a Herdade da Bombeira e Balanches.

Com grandes diferenças?

É o yin e o yang. Podes gostar mais do yin, podes gostar mais do yang. Um dia gosto mais de um, no dia seguinte, do outro. A verdade é que são vinhos diametralmente opostos e ambos são alentejanos. Por isso, muita atenção quando se fala do Alentejo, porque temos de perceber de que Alentejo estamos a falar.  Isto dá-me um gosto enorme, aproveitar esta região no seu melhor.

Voltei a Bucelas, depois da experiência na Quinta da Romeira / Companhia das Quintas, com o Murgas. Estou em Palmela (Pegos Claros), com o privilégio de poder trabalhar vinhas com 90, 100 anos, de uma só casta, Castelão, o que é raro, e poder fazer vinhos que são uma peça de um museu de arte antiga. Em contraste com o Vicentino, que estaria num museu de arte contemporânea.

Comecei, há pouco tempo, no Douro – que é uma região, de facto, extraordinária –, com a minha interpretação do Douro, respeitando as características da região, em dois projectos (o Val Moreira, que está a sair agora, e um que ainda vai demorar um pouco a ver a luz do dia) que vão dar o que falar. Foi uma guerra brutal até conseguir ir para o Douro. Não que não quisesse, pelo contrário, e tive muitos convites ao longo de vários anos, mas só agora foi possível, porque reorganizei a minha vida de modo a ter tempo para poder lá estar, explorar e respirar profundamente o que a região tem para dar. Que é, de facto, de uma complexidade imensa: é viticultura de montanha, na qual, na mesma quinta, há exposições norte, sul, este e oeste. Há muita complexidade associada ao Douro.

Também estou nos Açores, sítio com o qual tenho uma relação próxima desde pequenino, por ter família na Terceira. Há uns anos, fui com um primo meu ao Pico. Fui e nunca mais larguei. Numa das minhas férias lá, um amigo, que também faz vinhos lá, disse que eu deveria ir para lá e levar investidores. Eu respondi que para o Pico nunca ia fazer vinhos, porque ele estava lá a fazer um trabalho espectacular. Passado um mês das férias, recebo um telefonema da Cooperativa do Pico a dizer-me que tinha ouvido falar muito bem de mim e que eu havia sido altamente aconselhado, que gostava muito dos Açores e do Pico, e que eles gostariam muito que pudesse ser enólogo deles. Eu não queria aceitar fazer um trabalho à distância, mas fui convencido, porque aquilo era a minha cara. Ainda bem que aceitei, porque está a ser espectacular.

Um projecto que, infelizmente é, ainda, muito local?

Está a mudar. Era muito local, por uma questão de quantidade. Houve, entretanto, um grande aumento nas plantações e na área de vinha, e passámos a ter muito mais capacidade comercial. Não sendo um vinho barato, lançámos agora uma gama (Terras de Lava) que, de certa forma, democratizou o vinho dos Açores, entrando no continente. Também estamos no mundo: nos Estados Unidos, no Canadá, na Finlândia, na Alemanha, na Suíça, no Japão e acredito que agora entraremos na Suécia. Portanto, não é apenas mercado nacional. Para os Estados Unidos vão mais os vinhos
de
cheiro
, que só se vendem localmente, não sendo permitido vender para fora dos Açores, excepto para os Estados Unidos, onde é consumido completamente pelas comunidades portuguesas, mais especificamente açorianas, que lá vivem.

Além disso, também estás no Algarve, que era uma região muito pouco conceituada.

Isto do Algarve é novo, numa vinha que tem uma localização extraordinária. O Algarve está a dar a volta, e é uma região com imenso potencial, que teve algumas escolhas erradas, ao longo dos anos, que lhe estragaram o nome, mas, de há meia dúzia de anos para cá, passou a ter investimentos bem pensados e malta
nova com boas cabeças e com visão. Estão a aparecer vinhos muito bons no Algarve. Quando digo bons, são muito bons mesmo. No meu caso (Arvad), a experiência que tive na primeira vindima, agora vou para a segunda, é que o projecto vai dar muito que falar.

Como se tem sentido o impacto da pandemia no mercado dos vinhos?

Relativamente aos meus projectos, que são projectos de pequena produção, cujo objectivo é estar em restaurantes de referência, estava a correr tudo muito bem, como se estivesse a acelerar numa autoestrada e, de repente, põem-te uma parede à frente e foste contra ela. É esta a sensação. Horrível. Como se, de repente, a última coisa que esperavas que acontecesse, aconteceu. Ficaste sem mercado. No entanto, há algumas soluções. Tenho outros casos, de quem tem expressão na moderna distribuição, estar a subir vendas.

Moderna distribuição?

Supermercados, hipermercados. Na moderna distribuição, as vendas estão a subir em volume perto de 20%. É brutal. Mas porque o outro mercado, o dos restaurantes, foi praticamente para zero. Olhas para uma empresa grande e observas um crescimento nas vendas, mas o preço médio está a baixar. Como é que se interpreta isto tudo? O mundo teve um freeze, mas não foi a 100% no vinho. Não foi como os espectáculos que pararam, ponto. O vinho tem uma solução alternativa. Podes não querer estar nela, mas tens uma solução alternativa. Quem está a levar uma talhada muito grande, e não sei como vão aguentar, são os pequenos produtores que vivem só do vinho.

Porque não têm como chegar ao mercado final?

Não conseguem. 80% eram turistas. Os açorianos, por exemplo, não bebem vinho açoriano e 80% das vendas destes vinhos são feitas lá, mas quem consome é o turista.

Resumidamente, há medidas no sector dos vinhos. A primeira é o incentivo à diminuição do stock, destilando para aguardente, dirigida a vinhos certificados, que têm um padrão de qualidade, com a ideia de criar menos pressão sobre as vendas. A segunda ajuda é para guardares o vinho por mais tempo, em que o Estado vai dar-te X euros por litro durante um período de três meses. O Estado entrou com estas duas ajudas, que foram muito criticadas por serem muito baixas para um sector que tem sido dinâmico e que envolve uma indústria em volta (não podes olhar para o vinho só pelo valor do vinho que é comercializado, temos as garrafas, as rolhas. Há tanta coisa à volta do vinho…).

Além disso, há uma correlação entre o consumo de vinho per
capita
e o turismo em Portugal. Os grandes consumidores dos vinhos com mais-valia não são os portugueses, são os estrangeiros, os turistas que vêm cá.

Também pelo preço…

Porque estão dispostos a pagar mais, pois acham, sempre, que é barato e nós sempre fizemos vinhos óptimos e baratos. Em Janeiro ou Fevereiro, altura em que não temos muitos turistas, o preço médio do vinho cai. Vêm os estrangeiros e sobe novamente. Tens quase 30 milhões de turistas em Portugal.

Tinhas. Este ano não sei quanto vamos ter.

Tinhas. Ou seja, triplicavas a população portuguesa e isto tinha um impacto enorme sobre o volume de vinho vendido. Perguntas-me uma solução? O mundo é muito grande e se já trabalhámos muito neste sentido (promoção do turismo), precisamos trabalhar mais.

Como achas que os vinhos portugueses são vistos, neste momento, no mundo? Há muito tempo, tínhamos vinhos que achávamos que seriam bons, mas não tínhamos marca. Quando víamos algo relacionado com vinho português, aparecia o vinho do Porto ou da Madeira. Achas que hoje em dia as coisas mudaram muito? Já há, fora, uma noção do que é o vinho português?

Mudou muito de um ponto de vista relativo, mas muito pouco do ponto de vista absoluto. Porém, está muito melhor, de facto. Vais a uma feira internacional, com hectares e hectares de produtores do mundo inteiro, e o interesse por vinhos portugueses é muito maior. Por outro lado, o importador mundial já se apercebeu que Portugal não é um país só de vinhos baratos e, hoje, até recorrem mais a Espanha para este tipo de vinho. Com a consistência de prémios na área e de pontuações elevadas, o nome de Portugal vem subindo. O turismo também tem sido fundamental para isto, para espalhar a palavra. Aquela pessoa que vem cá, acaba por ser mais um embaixador que vai espalhar a palavra, quando voltar ao seu país. Isto tem sido interessante e tem ajudado a vender os vinhos lá fora. Hoje é muito mais fácil vender vinhos lá fora e conquistar novos países do que era há anos.

Porque, alguns anos, era, basicamente. Porto e Madeira.

Era Porto e Madeira e o resto precisava ser barato, ou não vendia. Mas há, aqui, uma culpa portuguesa. Nós, portugueses, temos pouca pedalada comercial para conseguir construir nome. Isto demora tempo e tens de o fazer de forma concertada no país inteiro. Não é só o vinho, têm que ser os sapatos, a roupa, as azeitonas, o azeite, a música, a cultura. Tudo junto. E acho que, nos últimos anos, isto tem corrido relativamente bem para as nossas capacidades comerciais. No entanto, cometemos uma grande argolada por muito tempo e andámos anos a vender o pior que tínhamos para fora e o melhor ficava por cá.

Para nós era óptimo, mas para os negócios, claro que não. Perdia-se um mercado potencial que não havia cá.

Era muito através do “mercado da saudade” que se apresentava Portugal ao resto do mundo. Cheguei a ouvir conversas, não em sítios onde trabalhei, de que, se havia um lote mau, tinha de ir para fora. O inverso daquilo que se deve fazer. Já há alguns anos que não é nada disto e o sector do vinho tem feito um trabalho, que, acho, pode ser inspirador para outros sectores. A forma como o vinho se associou: os produtores pagam, em cada garrafa, uma percentagem para um instituto interprofissional, a Viniportugal/Wines
of
Portugal
, com fins de promoção do vinho português. E, quando vamos para as feiras, vamos todos juntos.

Felizmente o sector dos vinhos foi um dos poucos sectores em Portugal que se soube juntar.

No caso dos vinhos, foram criadas regras, nomeadamente o selo presente em cada garrafa, que corresponde a uma taxa que paga a certificação e o organismo interprofissional destinado à promoção. Para obter a certificação, pagamos uma taxa ao instituto estatal (CVR), que tem como objectivo controlar a qualidade e garantir que o que está dentro da garrafa possui o padrão de qualidade de acordo com aquilo que é exigido para aquela região. Um vinho regional precisa ter ‘X’ de pontuação numa prova cega e passar por uma análise em que tudo tem que bater certo. Os vinhos não precisam de ser todos iguais, mas precisam, todos, de remar para um objectivo comum.

Além do dinheiro que se paga a este instituto (CVR), também se paga outra quantia para o tal organismo interprofissional, Wines
of
Portugal
, que é um óptimo exemplo de associação de produtores para um fim comum. Há uma ligação muito forte de coordenação do mesmo com o Estado, mas quem o suporta são os produtores. E é uma coisa rara no mundo, apesar de ser inspirada noutros exemplos, porque houve uma geração, acima da minha, que viu a lacuna e a corrigiu, criando isto.

Hoje em dia, ainda não estaremos no patamar de França ou Espanha, mas já existimos?

Já existimos. A união faz a força. Uma coisa, é ires separadamente para uma feira, outra coisa, é estarem todos os produtores, juntos, com uma bandeira comum.

Se não tens a marca grande, a marca Portugal, não chegas lá.

Vou fazer uma comparação gira. Fui ver dois jogos do Campeonato Europeu de Futebol de 2016, que ganhámos. No primeiro, contra os húngaros, estávamos em maior quantidade e não se ouviam os adeptos portugueses, apenas os adeptos húngaros, no estádio. Eram poucos, mas estavam todos juntos, a gritar e a entoar os mesmos cânticos, no lado português, não havia ninguém a coordenar, não havia um maestro. No outro jogo a que fui, a final contra os franceses, em França, estávamos num cantinho. Mas, nesse cantinho, conseguimos fazer tanto barulho, que não se conseguiam ouvir os franceses. Eles não tinham maestro e eram tantos que não se conseguia ouvir nada. Os portugueses, naquele cantinho, juntaram-se e começaram a cantar a uma só voz. É como os Vinhos de Portugal. Quando juntas os produtores, de repente, estão todos a cantar a uma só voz e a força que isso tem é brutal. Acho que os vinhos portugueses, neste sentido, têm feito um trabalho espectacular.

Como vês o futuro do vinho?

Vou tentar ser objectivo. Um futuro com menos álcool. Tenho muita relutância em ver um futuro risonho para os vinhos muito alcoólicos (e note-se que os frutificados são muito importantes em Portugal). Nos vinhos de mesa, tem sido a minha abordagem, buscar frescura. As alterações climáticas são incontornáveis e não podemos deixar de olhar para este tema. Por isso, a produção junto ao mar tem sido vantajosa e tenho tido resultados muito felizes. Acho que vai haver um movimento para perceber que castas autóctones temos por cá e quais se adaptam melhor a condições mais dramáticas de clima e conseguem sobreviver quando está muito calor ou, de repente, muito frio. As alterações climáticas não provocaram, apenas, o aquecimento. É nos Açores, onde tenho sentido mais estas alterações, se calhar por estar mais perto do núcleo do drama. O mundo está a mudar e isto é um ponto interessante para se discutir. É necessário abrir os olhos aos novos investimentos, novas vinhas, em zonas mais temperadas, junto ao mar. Nós, em Portugal, temos imensa sorte e há muito ainda por explorar.

A seguir, do ponto de vista comercial, acho que temos de nos assumir, claramente, como um país de grande qualidade, e não como um país de grande quantidade. Somos um país pequenino, não conseguimos produzir em grande quantidade. Não há hipótese nenhuma de nos compararmos com cenários que vimos por este mundo fora, que são linhas de vinhas de quilómetros. Não temos este tipo de hipótese e não temos um mercado elástico. Acho que o nosso futuro tem de ser, voltando mais uma vez àquele tema, o autêntico e o genuíno. Não temos de ir para preços malucos, mas temos de fazer muito bem aquilo que fazemos. E aí, acho que é preciso definir muito bem onde é que Portugal quer estar, qual o padrão que quer vender. Acho que teremos de ser um país de relação preço/qualidade, porque nessa relação somos imbatíveis. Mas, como a qualidade média é tão alta, o preço não tem de ser assim tão baixo. Uma relação preço/qualidade muito boa, com preços um pouco mais altos, é aí que acho que nos devemos posicionar.

Em relação à qualidade/preço, como consumidor, tenho a noção de que vou lá fora e pelo mesmo valor que pago por um bom vinho, bebo uma zurrapa.

Só nos Estados Unidos é que não, porque há vinhos do mundo inteiro sem impostos, ou com muito poucos impostos sobre o álcool. Mas é muito interessante, no outro dia estava a falar com alguém do meio e ele estava a dizer que, às vezes, gastamos imenso dinheiro para levar os vinhos para fora, porque vão os produtores todos e levam os vinhos todos, e que seria muito mais eficiente trazer as pessoas cá. Acho que os dois movimentos precisam de existir. Acredito que temos que ir lá fora mostrar, porque há muita gente que não vai se meter num avião para vir cá e as pessoas têm uma vida extremamente atarefada e se nós formos lá vê-las, é mais simples. E isto tem de ser repetido muitas vezes. Há momentos em que se pensa que aquilo não tem êxito nenhum, mas “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Mas, também é fundamental trazer as pessoas cá. O português sabe receber e não há quem não adore cá vir. Já sabemos que vamos ver roupas penduradas na janela e que isto faz parte do genuíno, do autêntico. Se é isto que queremos vender, ainda bem que está a roupa à janela.

A tal autenticidade. Chegar a uma adega e ainda ter o adegueiro, com bigodes dos anos 70 e um boné posto de lado, e não uma criatura anónima, loirinha e arrumadinha, com a T-Shirt da adega. O de cá é mais peculiar, mas é genuíno. Se calhar, cresceu lá.

Isso é, de facto, impagável. Tenho projectos em adegas desse género. Isso que estás a dizer é tão verdade quanto: recebo gente do mundo inteiro, que anda por muitos sítios e vive nas grandes cidades do planeta, e o que dizem, quando chegam cá? “Isto é que é o mundo autêntico, o resto é fake”. Ou seja, nós andávamos num movimento de procura daquela arquitectura espectacular de prédios que arranham, de facto, o céu. E, do lado oposto, a pessoa que ainda faz a casa na encosta, em argila. O projecto do Vicentino vai um pouco ao encontro disso, a nossa ideia da adega no futuro é entrar dentro das construções de taipas, dos materiais genuínos, autênticos, fazer a própria argamassa da terra que está ali, que, acho, que é algo que se está a perder muito.

Porque a matéria-prima está cá, e não estamos assim tão atrás de todos os outros.

Não temos os melhores vinhos do mundo, mas estamos na Champions, não estamos na Liga Europa, nem pouco mais a menos. Não sabemos é vender aquilo que temos, mas isso é outra questão. Até tentamos, mas o mundo (ainda) não dá muito valor. O que vejo como futuro? Aprendermos a vender.

 

Por João Albuquerque Carreiras

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